Respire fundo, faltam sete dias para a posse de Trump
Confira a coluna de domingo (12)
Há um princípio de incêndio nos camarins. O palhaço sobe ao palco e dá o alerta, mas o público pensa que é uma piada, e aplaude. O palhaço repete o alerta, a cada vez o público aplaude mais forte.
O filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard conta esta fábula, para ilustrar sua convicção de que o fim do mundo virá entre aplausos de tolos que pensam se tratar de uma piada.
Lembro dessa história quando leio as ameaças feitas por Trump mesmo antes de assumir a presidência americana. Anexar o México, o Canadá, o Canal do Panamá e a Groenlândia nem sequer é notícia nova, são más ideias que já foram debatidas ao longo de séculos e abandonadas por serem inclusive desvantajosas para os EUA. A conquista do México implicaria a concessão de “green cards” para milhões de imigrantes e a nacionalização dos cartéis de drogas, o oposto do que a habitual retórica trumpista preconiza.
Os canadenses têm semelhanças com seu vizinho do Sul, mas também diferenças que tornam o Canadá um país orgulhoso de suas tradições e valores, bem diferentes daqueles de Trump. O Canal do Panamá tem toda uma história, outros presidentes americanos pensaram em assumir o controle da passagem e desistiram por concluírem que a relação custo/benefício lhes seria prejudicial. A Groenlândia pertence à Dinamarca, que integra a União Europeia e a OTAN, aliados fiéis dos americanos, anexá-la para quê?
Tantas inconsistências levam muitos analistas a avaliar que Trump está apenas fazendo mais uma manobra diversionista, a fim de desviar a atenção dos seus seguidores. As promessas para "fazer a América grande de novo" são difíceis de cumprir? Façam-se outras. Em vez de expulsar todos os imigrantes, vamos anexar o México. Em vez de sobretaxar as importações, transformemos o Canadá no quinquagésimo primeiro estado da federação. Em vez de acabar com a guerra da Ucrânia em um só dia, incorporemos a Groenlândia. Se não dá para pôr fim à inflação, rebatizemos o Golfo do México de Golfo da América.
No entanto, diversionista ou não, a retórica MAGA vem sempre envolvida em ameaças do uso de violência. Invadir o México, tomar o Canal, incorporar uma parte de um país, ou um país inteiro, tudo parece fanfarronice, até que a gente se lembra que o fanfarrão detém os códigos de lançamento de mais de 1.000 (mil) ogivas nucleares. Assim, a partir de 20 de janeiro corrente, parece-me essencial acompanhar duas tendências, capazes de gerar nos EUA um movimento centrípeta e um centrífugo, e no mundo as consequências.
No interior dos EUA, muitos analistas preveem que Trump não aceitará mais as negativas que recebeu, no primeiro mandato, de militares e de agentes do FBI e da CIA. Tampouco deverá ter freios no Partido Republicano, ou na Suprema Corte. Ora, quando o poder se concentra em um só indivíduo, a tendência é que seus interesses políticos e financeiros, bem como suas relações pessoais com outros déspotas prevaleçam sobre os interesses nacionais. Paralelamente, a lealdade a esse chefe, e não a competência, passa a ser a qualificação primária para servir ao governo, seja nos ministérios ou nos escalões mais baixos. Danem-se os escrúpulos e o contraditório, os altos assessores tendem a fechar com o líder até o fim.
Esse líder carismático, sem travas, pode transformar a autoridade num exercício de força. Ao encontrar solo fértil para se expandir, a fanfarronice se transforma em violência institucional, não apenas aceita, como também incentivada. Os cidadãos se tornam programados para agredir os que não são espelho, em matéria de sexo, cor da pele, ideologia, nacionalidade. As guerras de conquista são lutadas por soldados que cumprem ordens sem questionar, incapazes de fazer julgamentos morais. É o que Hannah Arendt qualificou de “banalidade do mal”.
Não quero fazer mau agouro, nem assustar ninguém. Os americanos têm uma sólida cultura democrática, saberão resistir a movimentos autocráticos. Só penso que a partir do próximo domingo as relações internacionais sofrerão um abalo e vai ser preciso prestar muita atenção em Trump. Sem medo, porque o medo entorpece a capacidade de perceber, antecipar ou reagir. Mas levando a sério o palhaço da fábula de Kierkegaarde.