A repulsa aos imigrantes
Leia a coluna de domingo (15)
Servi na embaixada em Paris de 1983 a 1987. Adoro a cidade, quando posso volto lá. “Quatro anos atrás, turistando em pleno Champs-Élysées, fui surpreendido pela mão estendida de um homem ajoelhado na calçada. Allahu akbar, disse ele, pedindo esmola. Era a súplica de um farrapo humano, mas naquela hora, além de um susto danado, o que senti foi estranhamento e repulsa.
Só depois de andar uns cinco minutos, voltei envergonhado e, para apaziguar a minha consciência cristã e as minhas convicções políticas, dei ao infeliz uma nota de 20 euros.
Lembro desse episódio para calibrar a minha indignação com a atitude que prevalece hoje, na Europa e nos Estados Unidos, com relação aos imigrantes. É errado e ineficaz, porém compreensível. A natureza humana se assusta com o que não é espelho, como percebeu Caetano.
Cabe aos líderes políticos e morais de cada país o gesto civilizatório de explicar a fiéis e eleitores que os imigrantes não são necessariamente inimigos nem rivais.
Pelo contrário, podem ser parceiros de trabalho e agentes de inovação. Contudo, quando a nação líder do Ocidente elege para um segundo mandato um presidente que acusa os imigrantes de serem a principal causa dos males americanos, populistas no resto do mundo se sentem estimulados a embarcar na mentira e dela fazer um rolo compressor eleitoral.
Nessa cadência, a primeira reação da União Europeia (UE) à queda de Bashar al-Assad foi discutir a suspensão dos pedidos de asilo e refúgio político.
Em vez de se mobilizarem para assegurar uma transição pacífica e democrática na Síria, os 27 países preferiram agendar para breve um debate sobre como e quando mandar de volta para casa aqueles que receberam o status de refugiados.
Na última quinta-feira, dia 12, os ministros do Interior abriram reunião para discutir as medidas a serem tomadas, à luz dos acontecimentos. Sim, do Interior: os ministros das Relações Exteriores só vão se reunir no próximo dia 19. A inversão de competências segue a evolução recente das prioridades na UE, exacerbada pela eleição de Donald Trump. Uma verdadeira obsessão imigratória toma o lugar da política externa.
Na Alemanha, país que detém o maior número de refugiados sírios (cerca de 700 mil), o Parlamento propôs o congelamento dos pedidos de visto ainda não processados. O governo, liderado pela coligação entre os partidos social-democrata e verde, travou o movimento, argumentando que não é, por ora, previsível o que vai acontecer na Síria, e não seria prudente tomar decisões num momento tão volátil.
Esse entendimento foi seguido pela Bélgica, Bulgária, Grécia, Dinamarca, Holanda, França, Itália e Suécia, além de Reino Unido e Noruega, que não fazem parte da UE. No entanto, a Áustria, onde a direita venceu as recentes eleições legislativas, o governo decidiu desde já “organizar um programa de expulsão e/ou retorno para a Síria”.
A nova ministra das Relações Exteriores da UE, a eslovena Kaja Kallas, ponderou que a estabilização da Síria é a precondição não só para a volta dos refugiados, como também para evitar novas ondas de emigrantes em direção à Europa. Faz todo sentido. Ninguém sabe hoje o que acontecerá em Damasco.
Para se ter uma ideia, basta notar que o grupo islamista Hayat Tahrir al-Sham, que hoje detém o poder, ainda figura na lista negra da UE como organização terrorista. É cedo para prever, por exemplo, o que o novo regime fará com as minorias, sobretudo as religiosas. O verdadeiro interesse europeu é trabalhar para eliminar ou, pelo menos, minimizar as causas do êxodo sírio, e não cair de pau nos imigrantes.
Sinal dos tempos. Há apenas nove anos, sob a batuta da democrata-cristã Angela Merkel, a Europa dava acolhida a cerca de um milhão de sírios. Em menos de uma década, a paisagem política virou de ponta-cabeça. A direita radical surfa a insatisfação geral, enquanto os governos, na vã tentativa de preempção dos populistas, reinterpretam espuriamente as Convenções de Genebra, esvaziando o Direito Internacional Humanitário e afrouxando os limites à barbárie das guerras.
A esperança é que os chanceleres europeus retomem as rédeas da União Europeia e demonstrem ao mundo que ainda sabem fazer diplomacia.