Alguém tem que ouvir o coração
Eu sabia que iria me emocionar, por isso comprei ingresso para a primeira sessão. Tem sido um ano duro, este 2020. Nos obrigou a criar uma couraça, enrijeceu nossa alma. Há meses estamos acompanhando a sequência triste e fria das estatísticas: 15 mil mortos, 50 mil, 120 mil, 180 mil. E o grande dilema diante destes números é: fecha o comércio ou não fecha?
Alguém tinha que ouvir meu coração, e esse alguém era eu mesma, não para dizer que ele parou, ao contrário, para confirmar que ele continuava batendo, e como bateu dentro da sala de cinema, minha primeira vez diante de uma telona, desde fevereiro. Um reencontro com o escuro, com a voz, a música, a imagem – quanta arte cabe no silêncio profundo.
Barbara Paz, que lindo trabalho você fez. Poesia filmada com delicadeza e maturidade. A finitude e toda a bagagem que ela carrega, todos os questionamentos, despedidas, e muita suavidade incluída, pois o fim pode ser suave, tem que ser, senão como suportar?
Enquanto assistia às belas imagens que você captou, escolheu e editou, fiz o meu mergulho particular neste tema inquietante, a morte.
Ela é como uma visita mal-educada que não avisa quando irá bater à nossa porta, nos obrigando a encontrar um jeito de se distrair enquanto ela não chega.
O jeito de cada um é único, mas nossas angústias se parecem. Não são apenas os artistas que se perguntam se conseguirão, afinal, realizar sua grande obra antes de partir.
Acho que todos – professores, pedreiros, manicures, comissárias, garis – também querem fazer diferença na vida dos outros, deixar algo para a posteridade, e é este sonho (secreto ou não) que turbina a nossa existência e faz com que permaneçamos respirando para muito além dos diagnósticos fatais.
É a sobrevida do desejo, tão bem retratada neste documentário merecidamente premiado mundo afora.
Babenco – alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou. Com apenas 74 minutos de duração, conta uma vida, conta várias vidas, conta uma história, conta todas as histórias, descongela nosso coração, nos enternece, encanta, resgata nossa humildade e nos faz entender que sempre lutaremos por 10 minutos a mais de vida, mas com quem negociar este prazo?
Quem responde pelo nosso destino? Se tem que ser como está escrito, que ao menos a gente crie um roteiro bonito para nós também, um final lírico, nosso próprio faz de conta cinematográfico: faz de conta que não morrerei, que apenas irei viajar; faz de conta que passarei a eternidade num lindo apartamento com vista para o mar, segurando um cálice de vinho, e ninguém, nunca mais, irá me encontrar – mas eu estarei lá, estaremos todos lá, um dia, em algum lugar distante, num ponto infinito entre a lembrança, o afeto e a gratidão.