A terceira pessoa
Escrever ficção é sempre uma aventura pra mim. Acostumada a textos curtos e à prosa acelerada, a tarefa de mergulhar nas águas caudalosas de uma história longa é um desafio que exige tempo, foco e, no meu caso, coragem. Mas me atrevi, de novo. E, para tornar a façanha ainda mais emocionante, pela primeira vez escrevi um romance na terceira pessoa, essa entidade invisível.
A terceira pessoa é uma espécie de síndico contratado por fora. Alguém que vai dizer para o leitor o que o personagem está pensando e sentindo, se a água que bebe está envenenada, se seus medos o paralisam, se começou a chover. É quem faz a cobertura completa dos fatos objetivos e subjetivos da história. Craques da literatura dominam bem esse modo de contar.
Talhada pela poesia confessional e pelos 26 anos de colunismo de opinião, a experiência que tenho é outra. Minha fala escorre pelos dedos no teclado, mas, antes, passa pelo umbigo: o pronome “eu” me é muito familiar.
Então, quando comecei a publicar narrativas longas, estreando com “Divã”, naturalmente dei minha voz à personagem principal, e me entusiasmei com a possibilidade de sentir o que ela sentia, de entendê-la por dentro, de ser ela.
Escrever ficção na primeira pessoa se equipara ao trabalho de uma atriz que é desafiada a ser outro alguém, a agir como nunca agiu, com permissão para ser perigosa, imoral, alucinada, entre outras facetas que costumamos reprimir na vida real. E sem ser julgada por isso.
É, também, uma forma simplificada de fazer com que o leitor acredite no personagem, e só nele. Quando publiquei o livro de cartas fictícias “Tudo que eu queria te dizer”, fui um padre quebrando o voto do confessionário, uma mulher ficando cega, uma prostituta casada, uma moça que descobria tardiamente que era adotada, um louco preso no hospício, o viúvo de uma suicida, um adolescente que provocou uma morte.
A recompensa: os leitores se comoveram com as dores desses estranhos, sem me enxergar por trás.
Agora, ao escrever na terceira pessoa, enfrentei obstáculos que não conhecia. Foi difícil manter distância da cena. Me aproximei o máximo que pude, fui solidária a cada um dos meus personagens, mas eu não era eles: ainda era uma escritora olhando pelo buraco da fechadura daquela história – criada por mim, narrada por mim, mas sem a promiscuidade adorável a que eu estava habituada.
O resultado acaba de chegar às livrarias: chama-se “A claridade lá fora”. A boa notícia é que nem o narrador nem os personagens dão um pio sobre pandemia ou política.
Conto com sua leitura para descobrir do que trata o livro e para me dizer se valeu o esforço. Agora que já expus minhas dificuldades dissertativas, a única pessoa que me importa é você.