Atenção para doença simples
Coluna foi publicada nesta terça-feira (07)
Há meio século, quando iniciei o exercício médico, acreditava que iria me deparar apenas com diagnósticos enaltecidos pelos livros didáticos. Durante seis anos de faculdade, montei um imprescindível acervo teórico, pensando que poderia agir de maneira protocolar com todas as doenças.
O tempo veio me ensinar que somente a experiência enriquece o conhecimento. Apenas se consegue a simplicidade, através de muito trabalho.
Assim que comecei clinicar, atendi um humilde senhor com um ferimento na perna, de difícil cicatrização. Convicto da possibilidade de ser uma costumeira infecção bacteriana ou fúngica, prescrevi antibióticos, antifúngicos e curativos. Retornando várias vezes ao ambulatório, o paciente reclamava que a ferida não fechava. Um colega mais experiente, que havia trabalhado em área rural, conjecturou a possibilidade de ser “berne”. Levei algum tempo para perceber que se tratava de miíase, patologia cujo parasita provoca lesão na pele.
Os doentes são diferentes, mas as doenças não devem gozar de status.
Uma ferida na perna, apresentando vermelhidão e inchaço, liberando um líquido amarelo sanguinolento. Um paciente, cuja riqueza de queixas, como a sensação de algo coçando mexendo debaixo da pele, estavam tentando me mostrar o diagnóstico.
Berne?! Eu questionava. Não me lembro de ter visto algo igual, nem durante as aulas de dermatologia. Não se revela aquilo que não se conhece.
Nos livros, os textos em que eu estudara descreviam miíase como uma infecção parasitária causada por larvas de várias espécies de moscas que invadem a pele ou orifícios do corpo, como olhos, nariz e ouvidos. É uma zoo dermatose que afeta diversos animais vertebrados, incluindo o ser humano. A “bicheira” pode aparecer em diversas partes do corpo, provocando sintomas, como coceira e sensação de ferroada na pele.
Esse tipo de doença afeta especialmente indivíduos submetidos a más condições de higiene ou com pouco acesso a condições sanitárias adequadas e que possuam feridas na pele, sem devido tratamento.
O berne costuma ser identificado com facilidade. As larvas costumam ficar visíveis, o que facilita o diagnóstico por meio de uma análise simples do local de infecção. No entanto, alguns quadros podem ser confundidos com furúnculos, otites ou terçol, sendo importante descartar demais possibilidades.
Unindo acervo literário com larga experiência, aprendi a diagnosticar e tratar “doenças simples” com a mesma atenção que dou a “enfermidades sofisticadas”.
Limpar a ferida, retirar as larvas com o auxílio de uma pinça e tratar a ferida com antibióticos e antiparasitários, são procedimentos comuns.
Em alguns casos, a simples oclusão da ferida com vaselina impede que a larva respire, interrompendo a enfermidade. Entretanto, em quadros graves, é necessária uma pequena cirurgia local e até uma posterior cirurgia plástica para correção de cicatriz.
“Quem não sabe o que procura, não sabe interpretar o que acha”.