Mais que rico: visionário
Coluna foi publicada nesta quinta-feira (14)
Sempre que começo a ler sobre Bienal do Livro – agora no Rio mas alternando-se por todo o Brasil – me emociono e lembro de tio Ciccillo, seu fundador e irmão de meu avô. Ciccillo Matarazzo não deu apenas a Bienal do Livro ao Brasil, mas também colocou o país no mapa internacional das artes, fundando a Bienal de Artes – hoje uma das maiores do mundo, a Cia Vera Cruz de Cinema e doou nada menos que 1.500 obras de arte para fundar o Museu de Arte Contemporânea de São Paulo (MAC).
“Mecenas” – quando meu tio morreu, muitos o chamavam assim e ele era mesmo (rico que fomenta a arte). Mas também era um industrial dedicado, pois sabia que, para patrocinar seus sonhos artísticos e literários e chegar a compartilhar aquilo com seu país de adoção, precisava de fundos.
Também era sociável e agregador, tinha amigos de todos os extratos, nacionalidades e ocupações – eram leais e interessantíssimos –, alguns dos quais conheci bem.
Fiz essa longa introdução, pois Ciccillo era meu padrinho e foi a maior influência de minha vida. Até os 18 anos, tive o enorme privilégio de conviver com ele em almoços quase diários em sua casa e até hoje me pego a pensar no que ele diria ou pensaria.
Mesa Democrática – Ciccillo, como bom italiano, resolvia seus negócios à mesa. E à mesa de almoço, pois era para conversas que se estendiam pela tarde e os planos eram grandiosos – poucos não se concretizavam. Reunia escritores, pintores, livreiros, marchands, bom vivants, freiras e ex-namoradas. Não necessariamente nessa ordem. E eu.
Fato é que, cada almoço tinha um tema com uma discussão para valer: todos tinham direito a falar, opinar – até mesmo eu, vez ou outra, era convidada a dizer o que achava. Falava pouco pois sabia que não estava à altura daquele pessoal.
Bienal do Livro – marcou-me especialmente o dia em que ele reuniu os donos das principais editoras e livrarias do Brasil (eram poucos) para anunciar que, ante o sucesso da Bienal de Artes, estava pensando em “produzir” uma Bienal do Livro no Brasil. Ouviu de todos os livreiros que o brasileiro lia pouco, que não teria apelo.
Seu lado democrata ouviu pacientemente até o fim. Mas prevaleceu o temperamento explosivo e autoritário de quando tinha convicção de alguma coisa. Perplexa, vi meu tio declarar aos gritos que eram todos obtusos, não enxergavam nada e que ia fazer aquilo com ou sem o apoio deles.
Baixada a poeira, entraram em um acordo, e a Bienal do Livro foi um estrondoso sucesso: uma das primeiras, no Copacabana Palace, recebeu 20 mil pessoas e elas não conseguiam “voltar” tamanho o fluxo de gente.
Transferida para espaços cada vez maiores e rodando pelo Brasil, ela hoje recebe mais de 600 mil pessoas a cada edição, com incontáveis autores, inclusive eu, que jamais imaginei que fosse virar autora e assinar livros nesse espaço tão essencial.
Se vivo fosse, Ciccillo estaria reunido à mesa hoje com a galera das redes sociais e da Inteligência Artificial.
Sempre um passo a frente, entenderia o quanto tudo isso pode ajudar a compartilhar o progresso intelectual e artístico com todos do seu país de adoção e não mediria esforços ou fundos para isso.