'Só quem esteve lá para saber a dor de olhar para as pessoas', diz sócio da Kiss
A situação no local era terrível, segundo Hoffmann, com muita fumaça.
Escute essa reportagem
Único dos quatro réus que estão sendo julgados pelas mortes ocorridas na Kiss que não estava no local na hora do incêndio, Mauro Hoffmann –um dos sócios da boate– contou em seu depoimento ao júri nesta quinta-feira (9) o que viu na madrugada de 27 de janeiro de 2013, dia da tragédia.
"Só quem esteve lá para saber a dor de olhar para as pessoas. Eu olhava para as pessoas e elas tinham os olhos brancos, acho que queimados, do calor. Cena de horror", disse ele ao juiz Orlando Faccini Neto.
A situação no local era terrível, segundo Hoffmann, com muita fumaça. O empresário, que também era dono de outra casa noturna em Santa Maria (RS), afirmou que os táxis estacionados em frente à boate atrapalharam o fluxo de quem tentava sair do local, trancando o caminho.
Hoffman foi o terceiro réu interrogado no júri pela tragédia que deixou 242 mortes e mais de 600 vítimas. Antes já foram ouvidos Luciano Bonilha Leão, assistente da banda Gurizada Fandangueira e responsável por comprar o artefato pirotécnico usado antes do incêndio, e Elissandro Callegaro Spohr, o outro sócio da boate.
Enquanto Spohr, conhecido em Santa Maria como "Kiko da Kiss", é apontado como responsável pelas decisões no boate, Hoffmann ocupava o papel de investidor. Outras pessoas ouvidas anteriormente pelo júri disseram que não costumavam vê-lo na Kiss. Ao júri, ele afirmou que não tinha nem a chave do local.
Ele entrou na sociedade em 2011, na época em que o Ministério Público começou a discutir um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) com Spohr para resolver o problema de poluição sonora, devido ao vazamento de som da boate. A questão travou o negócio por uns meses, e Hoffmann só teria entrado depois de ver que estava resolvida.
"Eu estou nessa situação, fui sócio da boate Kiss, aconteceu tudo isso na minha vida, porque o Ministério Público assinou um TAC autorizando a boate a funcionar somente a metade. Autorizou sem ir lá, sem ver se tinha saída. A fé pública de um TAC, por um promotor, me fez entrar nisso. Eu não estaria aqui sentado hoje se um promotor tivesse dito que não dava para trabalhar", disse ele.
O promotor responsável pelo acordo, Ricardo Lozza, falou ao júri na quarta-feira (8), e disse que sua responsabilidade se limitava a questões ambientais e aos problemas com barulho da boate. Ele ainda reiterou que projeto das reformas no local não incluía a colocação de espuma.
A questão é importante porque a denúncia do Ministério Público pela tragédia diz que a espuma usada como revestimento na boate era altamente inflamável, tóxica, sem tratamento antichamas e que foi a geradora de gases que ensejaram asfixia. O documento cita entre as causas das mortes asfixia por inalação de gases tóxicos (monóxido de carbono e cianeto).
A defesa de Hoffmann mostrou um vídeo em que o procurador-geral do Ministério Público do Rio Grande do Sul, Marcelo Lemos Dornelles, diz que a acusação feita pela Promotoria entendeu que deveriam responder pelas mortes na Kiss pessoas ligadas ao fogo e à colocação da espuma.
"O entendimento é que abstraindo essas duas questões nada teria acontecido", afirma o procurador.
No júri, Hoffmann negou que tivesse conhecimento sobre a espuma no local ou sobre o show da banda Gurizada Fandangueira, que usou o artefato pirotécnico no dia da tragédia. Ele disse que Spohr
era o responsável por definir as atrações da casa e não costumava compartilhar as informações de agenda com ele.
No seu outro negócio, questionado pelo juiz, o réu respondeu que não havia espuma porque o local ficava em um subsolo e não tinha vizinhos.
Hoffmann disse ao júri que sua vida acabou após a tragédia e que teve que fechar seus negócios. Ele afirmou ainda que chegou a ir até a polícia para pedir para deixar Santa Maria com a família por segurança, já que houve ameaça de colocar fogo em sua residência.
"O que as famílias lutam é a mesma coisa que acho que tenho que lutar. Aqui só temos perdedor. Só temos perdedor. Tem os grandes perdedores que são as famílias que perderam seus filhos, mas aqui ninguém ganhou nada. Acha que é bom para os jurados estarem aqui tendo que decidir a vida de quatro pessoas que foram embrulhadas por um sistema?", declarou.
"Procurei me recolher por vários motivos, mas talvez por que não seria ouvido e não seria entendido pelos pais, naquele momento. Naquele momento, naquele calor, nada era verdade", afirmou sobre seu silêncio nestes quase nove anos.
À tarde, o quarto réu será interrogado no júri, o vocalista da banda, Marcelo de Jesus dos Santos. Em seguida, começam os debates entre acusação e defesa, que antecedem a votação dos jurados.
O júri da boate Kiss é o mais longo da história do Judiciário gaúcho. Ele tinha previsão de durar até 15 dias, mas com acordos, Ministério Público e defesas dispensaram pessoas que seriam ouvidas, encurtando o tempo de oitivas. Além disso, os réus têm respondido apenas ao juiz e suas defesas.
Comentários