Conheça a história da primeira mulher negra a se formar engenheira no Brasil
Enedina Alves Marques se alfabetizou por volta dos 12 anos, com a ajuda do dono de uma das casas em que sua mãe trabalhava
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Empregada doméstica, aluna que passava a noite copiando os livros da faculdade, professora da rede pública e engenheira que vistoriava obras com uma arma na cintura. A primeira mulher negra a se formar em engenharia no Brasil parece ter passado a vida tendo de provar que merecia estar ali.
Enedina Alves Marques nasceu em Curitiba em 1913. Seus pais tinham vindo do interior, com o êxodo provocado após o fim da escravidão. Sua mãe, dona Duca, era lavadeira e empregada doméstica.
Enedina se alfabetizou por volta dos 12 anos, com a ajuda do dono de uma das casas em que sua mãe trabalhava. Ela foi babá e trabalhadora doméstica em casas da elite curitibana, desde a infância até a faculdade.
Mais tarde, ingressou no curso normal e trabalhou durante a década de 1930 como professora, enquanto se preparava para realizar o sonho de ingressar na Faculdade de Engenharia do Paraná.
Sem condições de comprar os livros, pegava emprestado o material dos colegas de faculdade e copiava os textos durante a madrugada, segundo um trabalho de conclusão do curso de História de Jorge Luiz Santana, da UFPR (Universidade Federal do Paraná)."Na época, uma outra mulher estudava engenharia no Paraná, mas Enedina foi a primeira diplomada. É até difícil dimensionar a pressão e a discriminação que ela sofreu", diz Nelson Gomez, presidente do Instituto de Engenharia do Paraná.
Com esforço, concluiu o curso de engenharia civil em 1945, aos 32 anos, sendo a única mulher da turma. Logo conseguiu um emprego na Secretaria de Viação Obras Públicas paranaense e fez carreira no serviço público do estado.
Ela foi chefe de hidráulica e chefe da divisão de estatística na Secretaria de Educação e Cultura. "Por conta disso, ela foi transferida para o Departamento Estadual de Águas e Energia Elétrica em 1947, trabalhando no Plano Hidrelétrico e no aproveitamento das águas dos rios Capivari, Cachoeira e Iguaçu", segundo artigo da PUC-PR.
No serviço público, ela pôde participar de uma das principais obras de sua carreira, a Usina Capivari-Cachoeira (atualmente Usina Hidrelétrica Governador Pedro Viriato Parigot de Souza).A usina impressiona ainda hoje: maior hidrelétrica subterrânea da região Sul do país, localizada no município de Antonina (a 83 km de Curitiba) ela foi inaugurada em 1971 e é alimentada pelo represamento das águas do rio Capivari.
Segundo a Copel (Companhia Paranaense de Energia), que administra o local, o reservatório tem 16,3 km² e são 750 metros de queda entre ele e a usina.
Para gerar energia, a água atravessa um túnel de 15 quilômetros escavado na Serra do Mar, passa pela chaminé de equilíbrio e leva água até as turbinas. Três grandes cavernas foram escavadas onde estão a sala de máquinas, a dos transformadores e a das válvulas, diz a companhia. Os geradores produzem energia para suprir o consumo de 500 mil pessoas.
Uma afilhada que conviveu com Enedina desde a infância relatou para um documentário produzido sobre ela que a engenheira ia para a obra de revólver na cintura. Quando os peões começavam a zombar dela, dava tiros para o alto para se defender e ser respeitada.
Admirador da trajetória da Enedina, o supervisor da Copel e coordenador da modernização da usina, Lorival Antunes da Silva Júnior, 37, diz que ainda se comove com o duplo desafio enfrentado por ela –o de ser a primeira engenheira negra do país e ter participado da obra mais importante do estado na época.
"A história dela, além de inspiradora, traz orgulho para os paranaenses e tem muito a nos ensinar sobre resiliência. É justo que ela fique para sempre ligada a uma obra que é um desafio de engenharia."Apesar de sua importância para a engenharia, a biografia sobre a paranaense ainda é escassa.
Autora do livro "Enedina Marques: Mulher Negra Pioneira na Engenharia Brasileira" (Editora Inverso, R$ 45), que chegou a ficar entre os cinco finalistas do Prêmio Jabuti na categoria juvenil, a professora Lindamir Casagrande lembra que a história das mulheres não é contada como deveria e é preciso formar uma espécie de colcha de retalhos para que se chegue ao real significado.
"Embora nacionalmente não seja conhecida, ela é uma referência no Paraná, é um nome que sempre aparece, quando se pensa em representatividade. Ela foi a sexta mulher a se formar engenheira no país e o fato de ser uma mulher preta, pobre, filha de escravos libertos, acaba se destacando bastante."
Casagrande reforça que a história de Enedina precisa ser contada como uma prova de que a educação muda a vida das pessoas. "Meritocracia não existe, não adianta ter capacidade sem ter oportunidade. E é preciso pensar em quantos talentos não foram perdidos por falta de oportunidade."
Enedina morreu em Curitiba, em 1981. Ela morava sozinha e foi encontrada morta alguns dias depois, quando o porteiro do prédio em que vivia, no centro da cidade, sentiu falta dela.
"A imprensa sensacionalista da época anunciou como crime passional, já que a mulher negra não é respeitada nem depois de morta. Mas a família disse que ela sofreu um ataque cardíaco", afirma Casagrande.
O Instituto de Mulheres Negras Enedina Alves Marques foi fundado em sua homenagem, tendo por objetivo a luta contra a invisibilidade racial. Ela também foi lembrada com uma placa na UFPR e irá ganhar uma estátua no calçadão da rua XV de Novembro, no centro de Curitiba, prevista para ser entregue em 2024.
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