'Sou a lei, sou o juiz, mandado é o c', teria dito policial durante operação no Rio
Moradora grávida afirmou ter sido abordada por policiais que revistaram sua casa e a ameaçaram
Moradores dos complexos do Alemão e da Penha, na zona norte do Rio de Janeiro, relataram à Defensoria Pública do estado episódios de abusos, ameaças e impedimento de socorro durante a megaoperação policial realizada no dia 28 de outubro, que terminou com 121 mortos —entre eles quatro policiais.
Os relatos constam em documento enviado pela Defensoria ao Ministério Público, que, por sua vez, os encaminhou ao STF (Supremo Tribunal Federal) no âmbito da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) das Favelas.
Segundo o material, uma moradora grávida afirmou ter sido abordada por policiais que revistaram sua casa e a ameaçaram. Ela relatou que um dos agentes gritou: "Sou a lei, eu sou o juiz, mandado é o c", durante a incursão. O procedimento descreve que a mulher estava acompanhada dos filhos pequenos e se encontrava "em estado de forte abalo emocional".
Procuradas, as polícias Civil e Militar não comentaram as denúncias até a publicação deste texto.
A Defensoria também registra que recebeu vídeos e pedidos de ajuda de moradores durante a operação. Em um dos casos, uma mulher teria sofrido um infarto dentro de casa e, segundo vizinhos, não conseguiu atendimento imediato porque equipes médicas estariam impedidas de entrar no território.
De acordo com o relatório, o órgão precisou intervir diretamente junto ao Corpo de Bombeiros e à Secretaria Municipal de Saúde para que o socorro fosse autorizado.
O material registra ainda denúncias de invasões domiciliares, disparos aleatórios, retenção de moradores dentro de suas próprias residências e agressões verbais. Em uma das mensagens enviadas ao plantão da Defensoria, uma moradora afirma que policiais teriam apontado armas contra mulheres e crianças e ordenado que todos permanecessem deitados no chão enquanto revistavam o imóvel.
"Pelo amor de Deus, estou dentro da casa da minha sobrinha. Eles estão querendo entrar aqui dentro. Estão querendo dar tiro dentro da casa da minha sobrinha. Nossa, eu não sei, eu já fiquei nervosa, eu tomo água com açúcar. Eu não sei o que eu faço", disse uma das moradoras à Defensoria.
Em outro, um morador afirma que uma casa tinha sido incendiada. "Olha só a covardia que eles estão fazendo. Destruíram a casa da mulher toda. O outro vídeo então, que a minha neta me mostrou aqui, nossa senhora, criança, eles querendo entrar a força, xingando, destruindo a casa, só porque a mulher não deixou eles entrarem e ficar escondidos na casa dela. Olha a covardia, botaram fogo na casa da mulher."
Outras denúncias apontam que policiais se posicionaram em esquinas e atiraram "diversas vezes para dentro das ruas da comunidade em locais que não têm nada além de casas residenciais". Foi destacado que essas ações ocorreram em ruas sem saída e sem qualquer atividade de varejo de drogas, sugerindo que os disparos foram feitos de forma aleatória na direção das moradias.
No complexo da Penha, especialmente nas áreas da Matinha e do Cem, os relatos apontam para o uso contínuo de bombas e granadas e o "uso de drones para lançamento de explosivos nas casas". O Governo do Rio chegou a divulgar que traficantes estavam usando drones para jogar artefatos.
No dia seguinte à operação, enquanto corpos eram retirados da mata e colocados em uma rua de acesso ao complexo da Penha, uma moradora mostrou à reportagem dois vídeos. Em um deles, ela tinha filmado dezenas de cápsulas de fuzil que teriam caído no seu quintal. Em outro, há policiais que, segundo sua versão, teriam destruído seu portão residencial. "Aqui a gente vive na sombra do medo", afirmou.
As denúncias foram reunidas pela Ouvidoria da Defensoria Pública e encaminhadas ao Gaesp (Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública). O órgão afirma, no documento enviado ao STF, que os fatos narrados serão apurados no procedimento instaurado após a operação.
O procurador dos Direitos do Cidadão, Nicolao Dino, instaurou um procedimento para "apurar e responsabilizar policiais por violações de direitos humanos, dentro da chamada ADPF das Favelas", com o objetivo de "assegurar a transparência, prevenção da violência e efetiva proteção à vida e à integridade das pessoas", além de fortalecer mecanismos de controle externo da atividade policial e ampliar o diálogo com a sociedade civil.
Já a Promotoria do Rio afirmou ao STF que a iniciativa invade atribuições do órgão estadual e viola competências do Ministério Público fluminense.
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