Pesquisa brasileira revela rotas da gripe aviária que está matando animais
Influenza aviária, ou gripe aviária, pode infectar aves e mamíferos, incluindo, raramente, humanos
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O último verão de Maria Ogrzewalska foi gelado. Sob temperaturas polares e um sol que nunca se punha, a pesquisadora do IOC/Fiocruz (Instituto Oswaldo Cruz) esteve na Antártida de dezembro de 2024 a janeiro de 2025 para tentar saber mais sobre a gripe aviária que vem matando a fauna local.
Munida de agulhas e swabs (longos cotonetes, como os usados em testes de Covid-19), a equipe de pesquisadores espetou nadadeiras e cutucou o nariz de pinguins, gaivotas, leões-marinhos e outros animais selvagens para colher amostras de muco e sangue e, assim, descobrir as especificidades do vírus H5N1 que chegou a um dos lugares mais remotos do planeta.
"Na Antártida, sempre que você vai a uma colônia [de animais] ou na praia, você acha alguns animais mortos. É normal que haja uma certa mortalidade", explica a bióloga, que já visitou o continente quatro vezes.
"No entanto, dessa vez a gente coletou bem mais animais mortos -não pinguins, mas outros tipos de aves que parecem mais sensíveis, e também mamíferos aquáticos, elefantes-marinhos e lobos-marinhos. Isso é bastante preocupante."
Considerado altamente patogênico (ou seja, com capacidade de deixar o hospedeiro muito doente), o vírus foi detectado pela primeira vez em ilhas subantárticas em outubro de 2023, depois de matar milhões de animais pelo mundo. Desde então, pesquisas já encontraram pelo menos 13 espécies infectadas no continente, como pinguins, gaivotas, albatrozes, mandriões e focas.
Agora, um artigo liderado por Ogrzewalska, que está em processo de revisão por pares, traçou as rotas que levaram três variantes à Antártida. O patógeno foi identificado em duas aves (gaivotão e petrel-pintado) e um leão-marinho-antártico encontrados mortos nas ilhas Shetland do Sul em duas expedições distintas do Fioantar, braço da Fiocruz na Antártida, em janeiro e dezembro de 2024.
Por meio do sequenciamento genético das amostras, os pesquisadores afirmam que a introdução do vírus na região se deu por caminhos distintos, introduzidos durante a migração de animais silvestres.
Microrganismos da chamada "linhagem de mamíferos marinhos da América do Sul" foram detectados nas carcaças do gaivotão e do leão-marinho.
Esta linhagem emergiu em 2023, no norte do Chile, e se espalhou ao longo da costa para o sul do país e, posteriormente, para Argentina, Ilhas Malvinas, Uruguai e Brasil. Ela causou mortalidade animal em massa -só na península Valdés, na Argentina, mais de 17 mil elefantes-marinhos morreram. Além disso, foi associada a um surto numa criação doméstica de galinhas no Brasil e uma infecção humana no Chile, ambos em 2023.
Já o vírus detectado no petrel-pintado pertence à chamada "linhagem aviária da América do Sul" e surgiu no Peru, em 2022. De lá, se espalhou para o sul, até o Chile, e para o leste, até Uruguai, Argentina e Brasil. Em 2023, chegou à Geórgia do Sul -arquipélago situado entre o sul do continente americano e o norte do antártico, que acaba servindo como trampolim para a disseminação de vírus na Antártida.
A influenza aviária, ou gripe aviária, pode infectar aves e mamíferos, incluindo, raramente, humanos. A doença circula há décadas, tendo sido registrada pela primeira vez nos anos 1960, mas tem variantes mais e menos preocupantes. Os subtipos mais infecciosos (H5 e H7) podem aniquilar completamente colônias de animais, principalmente pássaros.
"O impacto para a vida silvestre é gigantesco", afirma Ogrzewalska. "E esses bichos nunca foram expostos a esse vírus, então agora vamos ver como [o vírus] vai se comportar. Porque eles já têm alguns tipos de vírus influenza, então esse vírus que vem de fora pode sofrer rearranjos com os vírus locais".
O vírus já tem mutações que o tornam mais adaptado para mamíferos, destaca a cientista, por isso o monitoramento contínuo é muito importante.
Segundo a Rede de Saúde da Vida Selvagem Antártida, já foram confirmados ao menos 76 casos na região, mas há grande chance de subnotificação, já que os registros reunidos pela entidade são feitos de forma voluntária.
"Esse impacto na vida silvestre -não só da Antártida, mas também nos outros continentes- tem que ser acompanhado muito de perto", diz Marilda Siqueira, chefe do laboratório de Vírus Respiratórios, Exantemáticos, Enterovírus e Emergências Virais da Fiocruz, onde Ogrzewalska atua.
"Se a gente tiver uma alta mortalidade de várias espécies de animais, isso pode mudar a configuração das populações que vivem ali. É uma questão muito importante para o equilíbrio ambiental", explica a pesquisadora, que também assina o estudo.
Além do IOC/Fiocruz, o artigo que traçou o caminho percorrido pela gripe aviária até a Antártida também teve a colaboração de pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade da Califórnia (EUA).
O laboratório chefiado por Siqueira é o centro de referência nacional em influenza junto ao Ministério da Saúde e à Organização Mundial da Saúde. O órgão adota a perspectiva de "uma só saúde", a partir da qual se entende que a saúde de um ser vivo pode afetar a saúde de todos.
"Um vírus respiratório detectado em animais, em qualquer região do mundo, pode vir a ter impacto na saúde humana global. O monitoramento em diferentes regiões do mundo, incluindo a Antártida, é estratégico para melhor prevenção e enfrentamento de possíveis pandemias", ressalta Siqueira.
No Brasil, o H5N1 foi identificado pela primeira vez em maio de 2023, em aves marinhas no Espírito Santo. Desde então, foram confirmados 184 focos de infecção, segundo o Ministério da Agricultura e Pecuária. Animais silvestres foram os mais atingidos, respondendo por 172 focos, seguido de 11 focos em criações domésticas de galinhas e gansos. Em maio deste ano, foi registrado o primeiro foco numa granja comercial, em Montenegro, no Rio Grande do Sul.
"Não tem como afirmar quando vai ser a próxima pandemia, qual é o vírus, e muito menos se vai ser o H5N1. O que nós sabemos é que nós temos uma grande chance de ter outra pandemia", diz a cientista.
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