O que se sabe sobre disputa territorial no Nordeste; 30 mil pessoas podem mudar de cidade
O governo de Sergipe deve iniciar em outubro a realização de um estudo técnico para avaliar a atualização dos limites cartográficos de Aracaju, capital do Estado, e vizinha São Cristóvão. A previsão é de que o estudo seja concluído até abril de 2026 e, no próximo ano, cerca de 30 mil pessoas que hoje são de Aracaju poderão se tornar cidadãs da vizinha São Cristóvão.
Veja abaixo Perguntas & Respostas que o Estadão preparou sobre a disputa territorial.
Por que Aracaju pode perder território para São Cristóvão?
A explicação está em uma decisão judicial que obriga Aracaju a devolver uma área de 20,78 km² a São Cristóvão. O governo do Estado, inclusive, já anunciou que vai coordenar a realização de um estudo técnico para avaliar a atualização dos limites cartográficos entre as duas cidades, após audiência de conciliação realizada com a Justiça Federal e as prefeituras.
A previsão é de que o estudo comece no próximo mês e seja concluído até abril de 2026, com etapas que incluem análise cartográfica, escutas populares, estudos de área e a elaboração de uma nova proposta.
A área em disputa representa 11,4% de toda a capital sergipana e teria sido anexada de forma irregular a Aracaju. No território, equivalente a 2 mil campos de futebol, estão escolas, unidades de saúde e duas praias bastante procuradas pelos turistas.
Qual foi a decisão da Justiça sobre os limites dos dois municípios?
A Justiça determinou que o governo de Sergipe e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) adotem medidas para fazer a revisão territorial. Na audiência de conciliação ficou definido que um novo estudo se faz necessário porque a legislação de 1954, utilizada como referência pela Justiça Federal, estabelece marcos considerados difusos e imaginários, o que dificulta a identificação clara dos limites.
“Todo o procedimento seguirá estritamente o que foi definido pela decisão judicial já transitada em julgado”, diz o governo. “Importante destacar que o processo se dará de forma gradual, com diferentes fases de estudo e diálogo com a população, e que a decisão final não caberá ao Poder Executivo estadual, mas, sim, à Justiça Federal, à qual será apresentado o parecer conclusivo”, diz, em nota.
A prefeitura de Aracaju diz ter entrado com ação rescisória no Tribunal Regional Federal para tentar reverter a decisão judicial. Alega que investe R$ 165 milhões na área que vai perder e que não foram levados em conta os impactos sociais para a população local.
Quais bairros serão afetados?
Com a mudança na divisa, parte dos bairros da Zona de Expansão de Aracaju, como Santa Maria, Mosqueiro, Robalo, Areia Branca e Matapuã passarão a integrar o município de São Cristóvão. O Mosqueiro é um dos principais pontos turísticos da capital, com praias de águas quentes, coqueirais e condomínios de luxo.
A população de São Cristóvão, de 95 mil habitantes, vai chegar a 125 mil. Já Aracaju cai de 603 mil para 573 mil moradores.
A transferência envolve 6,7 mil imóveis, 14 escolas com mais de 6 mil alunos, três postos de saúde e 31 km de ruas pavimentadas, além de redes de água e energia, praças e áreas verdes. A receita de Imposto Predial e Territorial Urbano nessa região é estimada em R$ 5,2 milhões anuais, dinheiro que passaria de uma cidade para a outra.

Como Aracaju pretende reverter a decisão?
A Procuradoria-Geral do Município de Aracaju (PGM) ingressou com Ação Rescisória no Tribunal Regional Federal da 5.ª Região (TRF-5) para assegurar o reconhecimento da Zona de Expansão como território aracajuano. A medida pretende reverter decisão judicial que, segundo a prefeitura, desconsiderou mais de 70 anos de administração da capital sobre a área, onde a Prefeitura mantém serviços públicos essenciais. O caso ainda não foi julgado.
De acordo com a PGM, a ação está fundamentada na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que determina que decisões judiciais levem em conta as consequências práticas para a sociedade. “O que buscamos com a Ação Rescisória é que o Tribunal avalie a situação da Zona de Expansão de acordo com a realidade concreta da região, considerando o sentimento de pertencimento da população e, principalmente, as consequências de uma eventual transferência para São Cristóvão”, diz o procurador-geral Hunaldo Mota.
Segundo ele, não se trata apenas de uma questão constitucional, mas de analisar os impactos sociais, econômicos e estruturais que nunca foram devidamente apreciados nos processos anteriores. Na área da educação, a prefeitura de Aracaju mantém 14 escolas municipais, que atendem 6.405 estudantes, com custo mensal de R$ 3,3 milhões.
Na saúde, são três Unidades de Saúde da Família, responsáveis pelo atendimento de 32.837 pessoas, com investimento de R$ 674 mil mensais. Além da manutenção de serviços, a administração executa obras estruturantes por meio do Programa Aracaju Cidade do Futuro, que contempla investimentos de R$ 165 milhões em macrodrenagem e urbanização nos bairros Mosqueiro e Areia Branca.
Parte dos recursos é financiada com empréstimo de US$ 84 milhões do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB). O projeto inclui canais de drenagem, ciclovias, avenidas, pavimentação, plantio de 6.500 árvores e a desapropriação de mais de 1 milhão de m². Segundo a PGM, retirar a administração da Zona de Expansão de Aracaju comprometeria diretamente a continuidade dos serviços.
O orçamento anual de São Cristóvão é de R$ 352 milhões, valor que seria insuficiente para custear a manutenção da região, que hoje demanda R$ 10,7 milhões por mês. “É preciso avaliar se o município vizinho teria condições de assumir, da noite para o dia, escolas, postos de saúde, coleta de lixo e toda a infraestrutura em funcionamento, além das obras em execução financiadas por organismos internacionais”, diz Mota.
Ele afirma que a responsabilidade de Aracaju pela gestão da Zona de Expansão já foi reconhecida em decisões anteriores da Justiça Federal e do Ministério Público, que atribuíram à prefeitura ações como a regularização de loteamentos, implantação de infraestrutura urbana e fiscalização ambiental.
A Procuradoria lembra ainda que o acesso viário à região se dá exclusivamente por Aracaju, sem ligação direta com São Cristóvão, e que os moradores se identificam como parte da capital, reforçando o vínculo histórico, social e cultural.
Qual é a posição da prefeitura de São Cristóvão?
O prefeito de São Cristóvão, Júlio Nascimento (União), diz que a cidade está preparada para assumir o território. “A disputa pela Zona de Expansão não é sobre narrativas, é sobre justiça e verdade histórica. São Cristóvão sempre foi dono desse território, que nos foi retirado de forma irregular. Hoje, com a decisão do Supremo Tribunal Federal, estamos garantindo o que é nosso por direito.”
Ele lembra que o município foi a primeira capital de Sergipe e considera “uma falácia” dizer que São Cristóvão não tem condições de assumir os bairros que estão na Zona de Expansão. “A verdade é que essas áreas sempre pertenceram a São Cristóvão e isso foi reconhecido pela Justiça de forma definitiva. Estamos falando do restabelecimento de laços históricos. Vamos cuidar do que é nosso.”

O governo do Estado reforça ainda que sua atuação se dá em caráter de colaboração com a Justiça, contribuindo para que o processo ocorra com a devida segurança técnica e jurídica.
O IBGE diz que segue as divisões territoriais definidas oficialmente pelo Poder Público. “Quaisquer atualizações nos dados referentes a municípios do país só ocorrerão quando e se as eventuais redefinições territoriais forem oficializadas.”
Como começou a disputa territorial?
A cidade de São Cristóvão é conhecida pelo seu patrimônio histórico, como a Praça São Francisco, tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e declarada pela Unesco como patrimônio da humanidade. Em junho de 1820, quando Dom João VI decretou a emancipação de Sergipe da Bahia, São Cristóvão tornou-se a capital do novo Estado.
Em março de 1855, atendendo a pleito dos senhores de engenho que precisavam de um porto para escoar a produção de açúcar, a capital foi transferida para Aracaju. Historiadores afirmam que, em 1954, quando a cidade enfrentava crise de energia elétrica, o prefeito de São Cristóvão cedeu sua área litorânea à capital em troca da instalação de um gerador elétrico na cidade.
Atualmente, a maior concentração populacional de São Cristóvão está na região do Jardim Rosa Elze, que fica mais próxima de Aracaju - a 10 km do centro da capital. Os 55 mil moradores dessa região trabalham e usam serviços públicos, como transporte coletivo e unidades de saúde, de Aracaju. O bairro se expandiu após a instalação do campus da Universidade Federal de Sergipe (UFS), que impulsionou o desenvolvimento da região.
Comentários