A pandemia, o déficit de visibilidade e o desvario do olhar
No antigo normal, na vida que se vivia em duas fatias, a presencial e a digital, o olhar e o dar-se ao olhar alheio permitiam uma verdadeira farra de visibilidade. Mas, no meio da vertigem de miragens, houve o novo vírus, e passamos a existir praticamente pela metade.
Em restrição ou isolamento geográfico, restaram os ciberterritórios para a maioria das operações de ver e ser visto. E o publicar-atualizar-visualizar-reagir-comentar-compartilhar-etc., que já era uma mania, virou igualmente pandemia. Mas não sem consequências.
Para a psicanálise, o circuito do olhar/ser olhado participa decisivamente da conformação humana, desde o princípio da constituição subjetiva, entre o bebê e quem exerce a função materna, até a estruturação de laços de coletividades.
Mas a troca significante de olhares vem sendo crescentemente distorcida pela compulsão alucinada do ver e do ser visto. Neste tempo virótico, observa-se uma fúria exibicionista e voyeurista na vitrine digital, potencializando as marcas daquela que Christoph Türcke chamou de “sociedade excitada”.
Aturdidos pela insanidade informacional e sem capacidade de fixar atenção em nada, transformamo-nos em caçadores de sensações, especialmente as excitações midiáticas. Assim, de atualização em atualização, vê-se a existência ser radicalmente reduzida ao roteiro do “ser é ser percebido” e “ser é perceber”.
Dos inúmeros problemas oriundos desse “normal” pandêmico, pode-se destacar a dependência crescente e tóxica do olhar do outro – que muitas vezes e cada vez menos tem um olhar para dar.
A mendicância por olhares é dos mais evidentes sintomas deste presente distorcido, haja vista a oferta insana de publicações, lives e assemelhados a implorar reações nas redes.
Essa febril imposição narcísica de evidenciar afetos e eventos também corrói os já liquefeitos limites entre o público e o privado, conceitos que herdamos do século XVIII, quando as cidades começavam a ajuntar maciçamente forasteiros deslocados para dinamizar o capitalismo fabril e a sua correlata máquina de consumo, fixando-se basicamente o que se viveria dentro e fora de casa.
Mas nesta época em que a digitalidade não enxerga paredes nem barreiras, como definir os limites do que é íntimo e do que é manifesto? A vida já estava bem longe da simples divisão entre o dentro e o fora de casa.
Com a contenção imposta aos olhares presenciais, as bordas tornam-se cada dia mais imprecisas. Poucos são aqueles que vêm mantendo certa lucidez tanto na hora de olhar, viciando-se no espiar, quanto no movimento de se expor, publicando sem temor nem pudor.
Um jogo de luz e sombra histórico, de base sociopolítica e tecnológica, produz o público e o privado em cada tempo. No entanto, pondera Hannah Arendt, “há muitas coisas que não podem suportar a luz implacável e crua da constante presença dos outros no mundo público”.
O desafio é sempre definir a cadência e a agenda do olhar e do dar-se ao olhar. Mas, hoje, parece que esse desafio vem se tornando mesmo incapacidade.
José Antonio Martinuzzo é doutor em Comunicação, pós-doutor em Mídia e Cotidiano
e professor na Ufes.