"Eu tenho um recado para você: trago seu amor em 24 horas"

Existe algo de febril na cena literária do Recife-PE neste ano. Uma chama, um rumor de páginas que se abrem e deixam escapar o cheiro de tinta e mistério. Em poucos meses, chegaram às minhas mãos três livros que, de modos diferentes, parecem conversar entre si — A vida é traição, de Raimundo Carrero; Apocalipse todo dia, de Ney Anderson; e agora, Eu Tenho um Recado para Você, de Tito Bela Vista. Este último, inpirado na cartomante Irmã Marlene, do Recife, me fez voltar aos anos de 1990, quando eu saía das aulas no Colégio Marista — no Centro do Recife — e caminhava, antes de pegar o ônibus, pela Rua do Hospício, marcada por cartazes da cigana que, no anúncio urgente, prometiam o impossível: “Trago seu amor em 24 horas”.
Eu, adolescente, não compreendia tanta pressa de se recuperar um amor perdido, nem a escrita com letras apressadas e coladas nas paredes do centro recifense. Mas essa era a assinatura inconfundível da Irmã Marlene. E o livro, de apenas 50 páginas, já nos brinda com essa recordação.
A partir do olhar de Tito, é possível ver que aqueles cartazes não falavam apenas de uma mulher, mas também de um tempo — um Recife em que o misticismo servia de bússola e consolo.
Foi desse imaginário da cigana conhecida pelas urgências, mais do que de uma figura real, que Tito Bela Vista puxou o fio do seu novo romance. Dessa cidade inquieta, com cheiro de maresia e mistério, o escritor lançou um livro que pode chamar de seu. Quem não se sentiu enganado ou satisfeito com os serviços de uma cigana, sinto muito, não tem um boa história para contar.
A cigana que não dormia
Em Eu Tenho um Recado para Você (Arteriê Editorial), Tito mistura sonho e vigília, realidade e presságio, como quem embaralha cartas de tarô. O livro será lançado na Bienal do Livro de Pernambuco, neste domingo (12 de outubro), e traz prefácio do astrólogo e ex-baterista dos Engenheiros do Hawaii, Carlos Maltz.
A história se passa entre o Recife e a Olinda dos anos 1990 — décadas de sombra e brilho, de violência urbana e mistério de beira-rio. A protagonista, uma cigana insone, é atormentada por um pesadelo que se repete como um disco riscado. Cada sonho é uma premonição, e cada pressentimento, um passo mais fundo no labirinto da própria mente.
A trama pulsa entre o real e o sobrenatural, refletindo a busca humana por sentido quando o mundo parece desabar. Tito transforma o misticismo em metáfora da sobrevivência: a cigana lê cartas, mas também lê o medo, a culpa, o instinto.
Entre o Curado e o destino

“Cresci no Curado 4, ainda hoje um bairro violento. Muitos dos meus amigos acabaram presos ou assassinados”, contou Tito. Ele fala com a serenidade de quem já aprendeu a decifrar o destino sem precisar de cartas. “Um dos caras mais perigosos que conheci matava gatos na nossa frente para nos intimidar. Mantive o nome dele no livro: Luciano ‘Cruel’. Depois, li no jornal que ele havia sido preso por matar um delegado.”
Essas lembranças da infância, duras e luminosas, misturam-se às visões de adulto. No inverno de 2007, Tito se trancou no quarto e escreveu à mão, com uma borracha azul e vermelha. “Passava horas errando, apagando, reescrevendo. Chovia muito naquele ano. Sempre gostei de criar, então não havia outra opção”, recorda.
Foi nessa solidão que nasceu o livro. E foi nessa solitude que ele entendeu que a intuição — essa bússola invisível dos ciganos e dos poetas — poderia ser o único mapa possível para atravessar o caos.
A cigana Magdala e o Recife dos presságios
A personagem Magdala, inspirada na mítica Irmã Marlene, é o coração do romance. Uma mulher dividida entre a fé e o desassossego, que tenta se libertar de visões e se reconciliar com o próprio dom. Tito confessa que a conheceu pessoalmente: “Depois de deixar a Marinha, um cigano me disse para buscar o oculto. Segui os cartazes e cheguei até a Irmã Marlene. Ela falava por metáforas, explicava o mundo como quem abre um baralho diante do destino.”
Em uma linguagem visual, seca e cortante, essa figura vira símbolo de todos os que tentam entender o invisível: gente simples, de periferia, sem acesso à psicologia ou à terapia, que busca nas crenças o que a ciência ainda não explica. E tudo bem.
Tito tem domínio do ritmo — alterna o sagrado e o grotesco sem cair na caricatura. A violência é seca, mas nunca gratuita. A trama do livro está ligada às recordações da sua própria vida.
“Para o homem e a mulher da periferia pobre, principalmente na década de 1990, não fazia muito sentido procurar um psicólogo ou tentar se entender a partir de alguma ciência. Faltava essa clareza. Então, para lidar com as próprias questões, entender o outro, ficar atento às oportunidades ou aos perigos, muitas vezes se recorria à intuição — algo que é naturalmente trabalhado nos espaços espirituais, como centros espíritas, terreiros de candomblé, igrejas cristãs. Essas instituições ainda hoje cumprem esse papel, muitas vezes estimulando as emoções e fortalecendo a intuição Tito Bela Vista, Escritor
Quando a intuição é o oráculo
A leitura de Eu Tenho um Recado para Você é como atravessar uma feira cigana: há música, medo, perfume de incenso e histórias que giram como saias coloridas. O autor funde suas lembranças à narrativa, fazendo do livro uma espécie de mapa místico da cidade.
No livro, há referências ao analista Carl Jung, claro (o inconsciente coletivo, os arquétipos, os sonhos como mensagens da alma), mas também um realismo nordestino de raiz: algo entre o misticismo popular e o naturalismo social. Tem coragem de entrar no caos moral dos personagens sem piedade, mas com compaixão.
Mesmo diante da violência, do medo e do peso do destino, o final conserva algo de humano. Tito Bela Vista não desumaniza seus personagens. Eles permanecem falhos, contraditórios e, por isso mesmo, verossímeis. O desfecho confirma essa postura: não há santos nem vilões absolutos, apenas pessoas confrontadas com o inevitável.
Essa recusa ao maniqueísmo é um dos méritos do livro. O autor não entrega um final de herói, mas de gente comum — o que o torna mais próximo do leitor e mais fiel à realidade social que o texto espelha. O final de Eu tenho um recado para você não é para ser entendido — é para ser sentido. E essa talvez seja sua maior qualidade literária.
O escritor e o serviço do destino
Tito Bela Vista nasceu no Recife. É historiador, professor, especialista em gestão e pensador de políticas educacionais. Dirige a SOP (Sala de Orientação Pedagógica) e é fundador do Coletivo Wolbits, voltado à tecnologia na educação. Também é músico e compositor. Entre seus livros estão Tudo que eu Faço Tem um Porquê (2022), 10 Contos de Vida ou Morte (2011–2015) e O Jardim dos Cactos (2002).
O livro Eu Tenho um Recado para Você ou o acordo flutuante entre o acaso e o destino, de Tito Bela Vista, será lançado no dia 12 de outubro, durante a Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, no Centro de Convenções, em Olinda (Av. Prof. Andrade Bezerra, s/n, Salgadinho). A obra, publicada pela Arteriê Editorial, estará disponível ao público por R$ 50.
Na final do Jabuti

O Festival Pernambucano de Literatura Negra segue fazendo história: acaba de se tornar finalista do Prêmio Jabuti 2025, na categoria Fomento à Leitura, e é o único representante do Norte e Nordeste na disputa. O anúncio veio dois dias depois da estreia da quinta edição do evento, dentro da Bienal Internacional do Livro de Pernambuco. Idealizado pela jornalista e escritora Jaqueline Fraga, o projeto se afirma como símbolo de resistência e valorização das narrativas negras. “Contar as nossas histórias, promover a leitura, a literatura e a cultura são missões que nos movem”, diz Jaqueline. O resultado sai no dia 27 de outubro, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
Contos interpretados por Hermila Guedes

A atriz Hermila Guedes vai interpretar contos do livro Apocalipse Todo Dia, do escritor Ney Anderson, durante a Bienal Internacional do Livro de Pernambuco. A apresentação está marcada para o dia 4 de outubro, às 18h, e contará com a preparação do encenador Quiercles Santana. Para Ney, que celebra a parceria como “um sonho e uma enorme honra”, o momento marca o encontro entre literatura e cena no palco da Bienal.
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