Feminicídio em Pernambuco: a luta entre leis avançadas e órfãos desprotegidos
Estado tem 18 normas jurídicas, entre leis e decretos, está na vanguarda em relação a outros do Nordeste, mas falta o peso da lei para o feminicídio
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Era 12 de abril de 2022, uma terça-feira, três dias antes da Sexta-feira Santa. Faltavam apenas dez dias para o Ministério da Saúde decretar o fim da emergência em saúde pública provocada pela Covid-19. Apesar do luto por mais de 700 mil mortos, havia uma parte da população ansiosa pelo direito de voltar a ser feliz ou pelo menos recomeçar.
Os brasileiros começaram a retomar a vida aos trancos e barrancos. Nem todos conseguiram. Débora Amaro dos Santos, 40 anos, não teve tempo de retomar a vida normal. Naquele dia 12, ela foi espancada, esganada e morta pelo companheiro identificado por Edílson Mendonça da Trindade Júnior, que tinha 35 anos na época. Sua filha de 5 anos estava presente na cena do crime.
Débora entrou nas estatísticas do feminicídio durante a pandemia em Pernambuco. Nos anos de 2020, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, houve 75 feminicídios no estado, contra 87 de 2021 e 72 de 2022.
Edílson não se importou com a esposa, que dizia amar. Não se preocupou com os traumas que poderia causar à filha de 5 anos e à enteada, que tinha 16 anos na época. Não se perguntou com quem as crianças ficariam.
Naquele momento, o que importava para Edílson era apenas ele e sobre a forma como liberou sem medo o lado “fera" para matar a mulher com quem vivia. Esta é a terceira e última matéria da série “Que amor é esse?”
Uma dor a mais para quem já é invisível
Débora morava na Ilha do Maruim, em Olinda, quando foi assassinada. Débora morava num lugar historicamente composto por habitações simples, muitas delas construídas com materiais como palha e enfrentava desafios relacionados a alagamentos e condições sanitárias precárias.
Naquela época, não havia qualquer tipo de proteção do estado para os órfãos do feminicídio. A sexta filha de Débora, chamada nesta reportagem de *Érica (nome fictício), atualmente tem 18 anos e teve muita dificuldade de falar no que viveu.
No ano do crime, ela já tinha se mudado para a casa da tia materna, por não aguentar o ambiente de violência familiar. A sua irmã, que viu a mãe falecer aos 5 anos, hoje tem 8 anos. E toda família ficou espalhada, sem muito contato. O medo, segundo *Erica, assombra os filhos que sobreviveram, sem trégua.
“Na época, senti uma revolta muito grande, porque ele tirou a vida da minha mãe na frente da minha irmã, que só tinha 5 anos. Tenho medo que ele possa se soltar a qualquer momento e fazer outra pessoa de vítima. É um pesadelo e só quero que ele apodreça na prisão”, disse ´*Erica, hoje com 18 anos. Na época, pelo que ela lembra, a família não recebeu apoio do estado.
Um estado pioneiro, mas que ainda deixa mulheres morrerem
Em 10 de janeiro de 2022, três meses antes da morte de Débora, Pernambuco aprovou a Lei nº 17.66 que instituiu a política estadual de Proteção e Atenção Integral aos Órfãos do Feminicídio. Já a lei que criou um fundo para beneficiar órfãos do feminicídio em Pernambuco foi aprovada em 28 de dezembro de 2022, mas a eficácia é questionada.
O estado de Pernambuco foi o primeiro do Nordeste a criar leis para fortalecer o combate ao feminicídio a partir de 2017. Inclusive, existem 18 normas (entre leis e decretos) que ajudam a proteger a mulher em Pernambuco da violência doméstica, um número muito superior ao de outros nordestinos vizinhos. Mas, não têm surtido o efeito desejado.
Segundo relatos históricos das advogadas feminista Myllena Calazans e Iáris Cortes, em 2005, Recife, a capital de Pernambuco, foi cenário da “Vigília feminista pelo fim da violência contra as mulheres”, na primeira do século XXI. Inspirada por esta iniciativa, a Articulação de Mulheres Brasileiras expandiu o movimento para diversos estados do país.
No dia 7 de março de 2006, uma série de manifestações simultâneas foi cuidadosamente planejada e realizada em várias localidades.
Essas ações tiveram como objetivo não apenas chamar a atenção da mídia brasileira para o grave problema da violência contra as mulheres, mas também pressionar os Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo para aprovar uma legislação de combate à violência doméstica.
Naquele ano a Lei n° 11.340, de 7 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, foi aprovada.
Entre o vácuo e a lei
Apesar da vanguarda de Pernambuco, muitos estados continuaram atrasados no dever de casa. Alagoas, Paraíba e Piauí só vieram a propor leis estaduais para combater o feminicídio em 2022, apenas dois anos atrás. Não se pode dizer que foram violões sozinhos.
Em todos os estados do Nordeste, leis e decretos estaduais para reduzir a violência doméstica demoraram mais de 10 anos para serem elaboradas após a aprovação da Lei Maria da Penha, em 2006, um retrato claro do machismo institucional e estrutural que ainda mata mulheres e deixa seus órfãos.
Veja cronologia dos em que os estados começaram a apresentar leis e decretos para combater o feminicídio
Pernambuco - 2017
Bahia - 2018
Ceará - 2019
Maranhão - 2019
Sergipe - 2020
Alagoas - 2022
Paraíba - 2022
Piauí - 2022
Rio Grande do Norte - 2023
A vontade política ou sua ausência
Aprovar uma lei no Brasil nem sempre significa a sua execução completa, porque depende da vontade política e de políticas públicas eficazes. Para se ter uma ideia, no dia 15 de março deste ano, em pleno 2024, o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) e a Defensoria Pública da União (DPU) firmaram uma parceria para garantir que crianças e adolescentes órfãos de feminicídio recebesse uma pensão especial prevista na Lei nº 14.717/2023, expressa na Constituição Federal, de forma ágil e eficiente. Ou seja, a luta continua para que uma lei aprovada em 2023 seja cumprida.
Uma análise das leis estaduais nordestinas
A Lei nº 8.872, de 2023, de Alagoas, por sua vez, destaca-se como a mais completa no atendimento aos órfãos do feminicídio no Nordeste devido a suas características abrangentes e integradas. Ela oferece uma cobertura multidimensional, garantindo direitos essenciais em saúde, alimentação, moradia, educação e assistência jurídica, além de prever suporte emergencial em casos de desabrigo e orientação para acesso a benefícios previdenciários, como pensão por morte.
A lei prioriza a proteção integral, com atendimento psicológico e psicossocial contínuo para órfãos e cuidadores em Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e acolhimento por equipes multidisciplinares, evitando revitimização. Sua intersetorialidade robusta promove a integração dos sistemas SUAS, SUS e da Rede de Proteção à Mulher, incentivando estudos de caso para prevenir reincidência de violência de gênero.
Na área de educação e formação, a legislação assegura prioridade em matrículas escolares e transferências, mesmo sem vagas disponíveis, além de incentivar a construção de vínculos educacionais e sociais para jovens.
Por fim, investe na capacitação e reconstrução de vínculos, preparando famílias acolhedoras para lidar com o trauma dos órfãos e oferecendo acompanhamento psicológico para garantir estabilidade emocional e social.
Por outro lado, apenas a Lei nº 9.546 de 2024, de Sergipe, oferece Benefício financeiro direto, com auxílio mensal de R$ 500,00, corrigido monetariamente, com acréscimos para famílias com mais de um órfão, tem critérios claros de elegibilidade, intersetorialidade, além de oferecer cursos de capacitação e educação, bem como monitoramento rigoroso.
A Lei nº 17.666, de 2022, de Pernambuco, é bastante abrangente, mas foca mais na articulação de políticas e depende de regulamentação de fundos para execução prática, sem benefícios emergenciais concretos.
Embora Pernambuco tenha 18 normas (entre leis e decretos aprovados até 2022, sem nada novo até então) visam combater o feminicídio, mas os recursos financeiros são destinados ao financiamento de programas de acolhimento e assistência, e não configuram um benefício direto e individualizado para órfãos ou seus cuidadores, o que pode ser uma limitação prática.
“É fundamental a identificação dos fatores que contribuem para a manutenção do ciclo de violência que, apesar de ser um evento perversamente democrático, atinge as populações e os territórios mais vulnerabilizados. A pandemia da COVID-19 expôs as vulnerabilidades já existentes e aumentou a situação de risco de determinadas mulheres”, diz um trecho do artigo “Homicídios femininos e feminicídios: antes e durante a pandemia de Covid-19, Pernambuco, Brasil.
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