Putin diz que não se preparou direito para atacar a Ucrânia
Comentários foram feitos durante a entrevista coletiva anual do líder, que ocorreu em Moscou
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O presidente russo, Vladimir Putin, disse nesta quinta (19) que deveria ter lançado a invasão da Ucrânia antes de fevereiro de 2022 e que a operação não foi bem preparada, numa rara autocrítica acerca do conflito.
Os comentários foram feitos durante a entrevista coletiva anual do líder, que ocorreu em Moscou. "A decisão [de invadir] deveria ter sido tomada antes, e deveríamos ter nos preparado mais sistematicamente", disse.
Quando atacou o vizinho, em 24 de fevereiro de 2022, analistas previam que Kiev poderia cair em até três dias. A soberba de desconsiderar resistência e erros básicos, como falta de linhas de suprimentos e táticas obsoletas levaram ao fracasso em tomar a capital.
Putin também falou pela primeira vez sobre como a guerra por ele disparada o impactou. "Eu comecei a fazer menos piadas e quase parei de sorrir. Esses anos foram de tribulação para o país, e para mim também." Questionado se é uma pessoa feliz, disse que "só haverá felicidade plena quando nossos meninos voltarem da frente de batalha".
Isso dito, o russo hoje está na ofensiva. "A situação está mudando drasticamente" em seu favor na Ucrânia, disse, refletindo os avanços desde fevereiro em especial no leste do vizinho. Nesta mesma quinta, mais duas vilas da região de Donetsk foram tomadas.
Voltou a dizer que está pronto a negociar, insistindo nos seus termos. "A política é a arte da acomodação. O problema é que o adversário se recusou a negociar", disse.
A entrevista é uma tradição desde 2001 em dezembro, e teve na edição de 2019 seu maior tempo de duração: 4h54min e 1.895 jornalistas presentes. Nesta quinta, foram exatas 4h30min. Ela não ocorreu algumas vezes, como em 2022, quando a Rússia amargava maus resultados na Ucrânia, invadida em 24 de fevereiro daquele ano.
Há espaço para dissenso, geralmente envolvendo jornalistas ocidentais. Esta foi a vez de Keir Simmons, o principal correspondente internacional da rede americana NBC, e Steven Rosenberg, da britânica BBC.
Ao questionar Putin sobre um eventual encontro com o presidente eleito dos EUA, Donald Trump, Simmons disse que o russo seria "um líder mais fraco" por ter "fracassado em alcançar seus objetivos na Ucrânia" e por ter visto o ditador aliado Bashar al-Assad ser derrubado na Síria.
Depois de dizer que está pronto para uma cúpula com Trump, "com que não falo há uns quatro anos", Putin disse que discordava de Simmons "e dos que pagam seu salário, que querem mostrar a Rússia como um Estado fraco".
Disse então que seu país "é verdadeiramente soberano e está mais forte hoje". Putin então sapecou uma citação do escritor americano Mark Twain (1835-1910): "Os rumores da minha morte foram altamente exagerados", afirmou, referindo-se no caso à Rússia, para aplausos da plateia que deveria questioná-lo.
Já Rosenberg questionou se Putin considerava ter cuidado de seu país, dado que está sob sanções e viu a Otan se expandir com a guerra. "Eu tirei o país do precipício", respondeu, repassando a história dos caóticos anos 1990, após o fim da União Soviética.
PUTIN PROPÕE USAR NOVO MÍSSIL CONTRA KIEV EM DUELO
Ainda no tema militar, Putin desafiou os Estados Unidos ao que chamou de "duelo tecnológico" entre seu novo míssil balístico e qualquer sistema de defesa antiaéreo de Washington. O palco? Kiev, a capital da Ucrânia.
"Não há como interceptar o míssil Orechnik. Nós queremos conduzir esse experimento. Atingir, digamos, Kiev, com todos os sistemas antiaéreos ocidentais em alerta. Vamos conduzir esse duelo tecnológico, vai ser útil para nós e para os americanos", disse.
O Orechnik, que em russo significa aveleira e cujo nome de batismo Putin admitiu ser um mistério, virou central na propaganda de guerra russa. Seu emprego em um teste conta Dnipro, em novembro, impressionou analistas: ele emprega ogivas múltiplas como um míssil intercontinental, que podem ser nucleares, e segundo o russo tem alcance de 5.500 km.
Putin respondia a uma questão acerca da possibilidade de os EUA cederem um sistema de defesa de alta altitude THAAD para Volodimir Zelenski.
Ele também comentou o assassinato do comandante das tropas de proteção contra armas de destruição em massa, general Igor Kirillov, morto por um patinete-bomba em Moscou na terça (17), chamando-o de ato terrorista. A Ucrânia admitiu a ação. Putin disse que é preciso corrigir "erros" que permitiram o ataque.
Uma das questões em tempo real veio de Kursk, região invadida pela Ucrânia, de onde uma moradora chamada Tatiana questionou Putin sobre "quando ela poderia voltar para casa ou ganhar uma casa nova".
Depois de dizer que a reconstrução virá, falou sobre a invasão em si. "Não vou dar uma data [para a expulsão dos rivais], mas vai acontecer", disse ele, pedindo para dois assistentes abrirem uma bandeira da 155ª Brigada de Fuzileiros Navais da Frota do Pacífico, que luta em Kursk, enviada com assinaturas de soldados a Putin.
O presidente foi então confrontado por um dos mediadores, o correspondente de guerra Dmitri Kulko (Canal 1), acerca da queixa de militares sobre pagamento em Kursk, onde o combate não é considerado parte da guerra no vizinho e a remuneração é menor.
O evento reuniu cerca de 500 jornalistas, e seleciona alguma das 1,5 milhão de questões enviadas por cidadãos —algumas são lidas, outras gravadas. Como o nome do evento, Resultados do Ano, o tom é de palco para Putin prestar contas à sua maneira.
Ele falou sobre questões do dia a dia e a economia. Disse que o crescimento do PIB russo deverá cair de 4% neste ano para no máximo 2,5% em 2025 porque a economia está algo superaquecida e a inflação está em torno de 9%, "o que nos preocupa".
Numa rara reprimenda ao Banco Central, disse que o aumento dos juros para conter isso talvez tenha vindo com atraso. Nesta sexta (20), o BC vai decidir a nova taxa básica de juros do país, que já está em astronômicos 21% ao ano.
Putin falou sobre questões diversas, como a falta de insulina em algumas regiões, a inflação do preço da manteiga e a relação que tinha com líderes estrangeiros que considerava próximos, como o alemão Helmut Kohl, o francês Jacques Chirac e o italiano Silvio Berlusconi.
Num momento deslocado, queixou-se de ter de responder a questões de uma jornalista de um canal religioso, que se queixava do aborto na Rússia, do líder soviético Vladimir Lênin ainda ter sua múmia exibida em Moscou e de sites pornográficos.
Sobre aborto, disse que é um direito da mulher, apesar de considerações religiosas. Pulou Lênin e foi direto à pornografia: "Talvez tenhamos de oferecer sites com conteúdo mais interessante em vez de falar em proibição", disse ironicamente, arrancando risadas da audiência.
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