Mercosul diverge antes de comunicado final, atrasa declaração e muda tom sobre golpe na Bolívia
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O comunicado final da Cúpula de Líderes do Mercosul, realizada nesta segunda-feira, 8, amenizou o tom ao tratar da quartelada em La Paz que o governo da Bolívia denunciou, há 12 dias, como uma tentativa de golpe de Estado. Diferenças ideológicas e de visão política complicaram a aprovação da declaração final, que foi atrasada e negociada em período além do comum.
Os diplomatas envolvidos voltaram à mesma após o fim dos discursos presidenciais e a concordância de todos para ajustes de redação, e o texto só veio a público cinco horas depois.
As dificuldades fizeram com que fosse publicado somente um comunicado conjunto, o principal deles, aprovado pelos países membros (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) e a Bolívia.
O bloco desistiu de uma segunda declaração, que costuma ser negociada também com os Estados associados - entre eles, estavam presentes representantes da Colômbia, Chile, Peru, Equador, Guiana e Panamá, na condição de convidado. Houve objeções da delegação chilena em relação ao conteúdo.
Os países adotaram ainda um terceiro comunicado presidencial de conteúdo especial sobre a "luta contra o crime organizado transnacional". Essa pauta contra o terrorismo e o narcotráfico - a "máfia" - foi patrocinada por Argentina e Paraguai.
A reunião do bloco expôs divergências políticas, acentuadas pela estreia no fórum dos representantes do governo de Javier Milei, na Argentina - o libertário foi o único presidente a se ausentar do encontro. Mas sua delegação levou adiante a pauta liberal na economia e de conservadorismo, o que afetou o jogo de forças interno.
Diplomatas afirmaram que a agenda de batalha conservadora de Milei, bloqueando menções a temas de gênero, direitos humanos e socioambientais, causou problemas.
"Tivemos que usar uma perseverança inflexível e uma plasticidade para poder chegar a esse consenso", disse o presidente paraguaio, Santiago Peña, a respeito do comunicado conjunto dos membros e da Bolívia, o principal.
O caso da Bolívia foi um deles. Ao abordar o principal fato político da região nos últimos dias, os países usaram termos mais genéricos, menos enfáticos e não repetiram manifestação de solidariedade com o presidente Luis Arce, presente na plenária.
Ele formalizou em Assunção a adesão da Bolívia - em 30 dias o país passa a ser considerado membro pleno do Mercosul, tendo prazo de quatro anos para incorporar as normas do bloco.
A palavra "golpe", como o governo Lula se refere, assim como a Bolívia, não aparece no comunicado oficial. Ela também não havia sido usada antes pelo bloco.
"Reiteramos que toda tentativa de afetar instituições democráticas ou afetar a ordem constitucional na Bolívia deve ser condenada. O estado de direito e o apego às instituições democráticas devem ser sempre apoiados", expressa o texto do comunicado conjunto.
A referência difere daquela manifestada logo após a quartelada, ocorrida em 26 de junho. Um dia depois, o Mercosul manifestava "profunda preocupação e enérgica condenação às mobilizações de algumas unidades do Exército boliviano, que visam a desestabilizar o governo democrático do Estado Plurinacional da Bolívia".
Os países rejeitaram, naquela ocasião, "qualquer tentativa de mudança de poder por meio da violência e de forma inconstitucional que atente contra a vontade popular". E ainda expressaram "solidariedade e irrestrito apoio à institucionalidade democrática do governo constitucional do presidente Luis Arce".
Entre o comunicado anterior e o atual, um fato veio a público. O presidente Arce foi acusado pelo general Juan José Zúñiga, que liderou a quartelada e acabou preso, de encomendar um autogolpe. A Argentina de Milei passou a apoiar a acusação de que tudo não passou de uma fraude.
"Lamentamos declarações infundadas e pouco sérias sobre um suposto autogolpe, quando se tratava de um clássico golpe de Estado", respondeu o presidente boliviano, ao discursar na cúpula.
Todas as delegações abordaram o fato, ainda que indiretamente, durante a plenária presidencial e de forma distinta. A que mais se aproximou foi justamente a da delegação argentina.
A chanceler Diana Mondino, que substitui Milei, afirmou que "nenhum golpe de Estado ou ataque à democracia é aceitável". O presidente do Paraguai, Santiago Peña, disse que "podemos ter várias diferenças políticas genuínas, mas a democracia, o Estado de direito e o respeito irrestrito pelos direitos humanos são simplesmente inegociáveis".
A regra do Mercosul é que as decisões devem sempre ser tomadas por consenso. Segundo embaixadores consultados pelo Estadão, um dos entraves à declaração foi justamente como tratar a proposta argentina de reforma do Mercosul - especialmente a sugestão de que a forma de negociação de acordos comerciais fosse flexibilizada e os países pudessem abrir frentes bilaterais.
O Uruguai pleiteava negociar isoladamente, com foco em fechar com a China, e agora ganhou o apoio da Argentina de Milei na defesa de mais "flexibilidade" negocial.
Diana Mondino disse que a negociação simultânea de todos os países do bloco tem sido extremamente lenta. Temos que mudar o sistema de negociação para ser mais rápido", afirmou ela.
Segundo a chanceler, essa maneira nova de travar negociações de livre comércio proposta pela gestão Milei poderia não ser a mais apropriada, mas a mudança deveria ser apreciada.
A mudança negocial, flexibilizando para acordos bilaterais, é um dos três pilares da reforma proposta pelo governo Milei. Os outros são alterar o processo de decisão dos órgãos, para torná-los mais ágeis em implementação, e a gestão financeira, com uso racional dos recursos.
Ela afirmou que o Mercosul precisa ser mais "voraz", "com esteroides". "Deixemos de ser um Mercosul pequeno, medroso, protecionista e estagnado", provocou. "Quem decide, em que se gasta e como se gasta não pode ficar à deriva, deve haver escrutínio, uma decisão colegiada e que haja auditoria posterior", afirmou a argentina.
Peña fincou posição ao lado do Brasil em favor do "avanço conjunto nos processos negociadores no marco de toda a política comercial externa comum". A diplomacia paraguaia argumenta que somente atuando como bloco conseguirá melhores condições de negociação.
A chanceler de Milei chegou a chamar a atenção, durante sua intervenção junto aos presidentes, de que às 11h30, uma hora antes do fim da plenária, não havia ainda acordo sobre o conteúdo da segunda declaração, que envolvia todas as delegações - países parte e os associados. Ela disse que o comunicado era o "elefante na sala" e lamentou a falta de consenso.
"Foi um exercício pragmático e construtivo. Esse é um foro de consulta, tem valor porque trocamos pontos de vista. Não deveria ser um problema. Não temos por que estar de acordo, mas sim poder escutar opiniões distintas. Espero que alcancemos como grupo esta maturidade", disse Mondino.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva criticou a promoção de "interesses reacionários". "Um pseudo 'aggiornamento' que afasta o Mercosul de suas bases sociais nos enfraquece. Apagar a palavra gênero de documentos só agrava a violência cotidiana sofrida por mulheres e meninas", afirmou, em indireta aos representantes de Milei. O termo de fato não aparece no comunicado oficial, sendo substituído por "mulheres".
Diante do risco de que a declaração não fosse publicada, Santiago Peña fez um apelo. O anfitrião paraguaio ressaltou a integração não tem sido "nada fácil" e reconheceu a existência de diferenças reais entre os países, interesses opostos e "dívidas históricas enormes", além de divergências políticas e ideológicas. Ele pediu que os mandatários, no entanto, se concentrassem nos aspectos que os unem e resolvessem suas diferenças dentro do bloco, e não fora dele.
"A diversidade e o pluralismo não são sinal de fraqueza, ao contrário, são base de uma visão política mais integral e humana. Nenhum absolutismo em política termina sendo sensato. A história nos ensina dolorosamente como terminam dolorosamente esses eventos. Nosso processo de integração deve estar acima dessas legítimas diferenças de visão política", disse o paraguaio.
"Também podemos ter diferentes pontos de vista políticos ou ideológicos. Isso é normal e não deve nos assustar. Mas o que nunca podemos aceitar é que nos separem da nossa tarefa de nos integrarmos em bases cada vez mais sólidas. Não há outro caminho para nós se quisermos ter um lugar num mundo cada vez mais volátil e convulsionado."
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