Luiz Gonzaga é produto e tradução do sertão na nova cinebiografia 'Légua Tirana'
Obra sobre o cantor do sertão opta por silêncio e traz apenas duas músicas do rei do baião
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Em "Légua Tirana", nova cinebiografia de Luiz Gonzaga que chega aos cinemas nesta quinta-feira (21), praticamente não se ouvem músicas do rei do baião. Há duas delas —"Vira e Mexe", o primeiro sucesso do artista, e a faixa que dá nome ao filme, já nos créditos. Em vez do ronco do fole, ouvem-se os sons que emergem da terra no sertão nordestino.
"A gente carregou esse filme de silêncio para que as pessoas pudessem escutar o silêncio do sertão —que não é silêncio, é o carro de boi que aparece de repente, um passarinho, o chocalho. Quando você para de ouvir o que está em primeiro plano, começa a ouvir todo o resto", diz Diogo Fontes, codiretor da obra, ao lado de Marcos Carvalho. "A escuta do sertão está presente na obra de Gonzaga, é a matriz de sua criação."
É justamente dessa matriz —no caso, a infância— que trata "Légua Tirana". A maior parte do filme acompanha o jovem Luiz Gonzaga, interpretado por Kayro Oliveira, e sua interação com os pais, amigos, desafetos, desconhecidos, a geografia e até figuras míticas do sertão. É a imaginação do ambiente que forjou o artista, nascido na cidade de Exu, no Sertão de Araripe, na divisa de Pernambuco com o Ceará.
O espaço e seus habitantes foram incluídos na pesquisa para o filme tanto quanto as fontes bibliográficas usuais de uma cinebiografia —pessoas que conviveram com Gonzaga, livros e pesquisadores. É uma visão do sertão de dentro para fora, diz Carvalho, ele próprio nascido na região, filho de agricultores de Serra Talhada, em Pernambuco. Fontes também é nordestino, de Alagoas.
Boa parte da equipe do filme, ressalta o diretor, foi formada por moradores da região de Exu que passaram por um processo de formação e preparação de elenco. Isso inclui Wellington Lugo, que interpreta Luiz Gonzaga em sua versão adolescente.
"É um filme que nasce e brota do sertão", afirma Carvalho. "Sou muito conectado com essa questão da natureza, de ver o sertão em sua exuberância —na geografia, na flora, na fauna… Isso é muito importante para a gente que nasce e que vive no sertão."
Até por isso, Kayro Oliveira caiu como uma luva no papel. Descendente do povo indígena Anacé, de Caucaia, no Ceará, ele tinha apenas 11 anos quando filmou como o pequeno Gonzaga. Sanfoneiro que ganhou fama no programa The Voice, da TV Globo, o ator, hoje com 18 anos, é fã do rei do baião desde a infância.
"Eu tinha noção de que era um negócio grandioso, mas não tinha o pensamento de que era uma responsabilidade. Se tivesse, não teria saído do jeito que saiu", ele diz. "Tem um pouco de mim também. É como o diretor, o Diogo, sempre fala, todos nós temos alguma coisa de Gonzaga dentro da gente."
Para os admiradores mais assíduos do cantor, há dicas e referências sutis às suas letras no roteiro e arranjos musicais vez ou outra tocados na sanfona por Kayro de Oliveira. Mas "Légua Tirana", diz Marcos Carvalho, se passa num momento em que suas canções mais famosas sequer existiam, menos ainda eram sucesso no país.
O filme mira sua câmera para a relação do menino com o espaço —que nesse caso, não se trata de uma caatinga resumida à seca e ao sofrimento. "A miséria não é presente no filme como um atalho fácil", afirma Diogo Fontes.
O jovem ator conta que não teve muita dificuldade de levar à telona sua intimidade com aquela flora e fauna. "Sou indígena, então muitas das coisas de correr no mato, escutar os bichos, eu tive essa vivência também, apesar de ser de uma época bem mais nova. Onde eu morava, tive essa oportunidade de andar no mato, descobrir as coisas. E esse Gonzaga tem isso, né?"
"Légua Tirana" retrata tanto cenas verídicas, como o trabalho de Gonzaga como ajudante de tropeiro, em que sofre maus-tratos, situações em que o racismo se fez presente e a paixão pela sanfona herdada do pai. O ator Tonico Pereira dá vida a um padre bastante peculiar, inspirado numa figura conhecida de Exu.
Mas há também o que os diretores chamam de núcleo de encantados, ou personagens lúdicos que dão à obra ares de realismo mágico. Entre essas figuras está uma cigana interpretada por Cláudia Ohana e um cangaceiro vivido por Luiz Carlos Vasconcelos. "A proposta era realizar um sonho do Luiz, de se encontrar com Lampião", afirma Carvalho. "O próprio Januário [pai de Gonzaga] também está dentro desse núcleo, ele dá força ao filho para romper essa barreira."
A tal barreira é metaforicamente representada pelo paredão da Chapada de Araripe, cenário da maioria das cenas. Ela representa o maior embate do filme —um cabo de guerra entre as forças que puxam o jovem Gonzaga para ficar no sertão e as outras que o seduzem a viver o mundo que há além daquela terra.
"É o conflito entre o Luiz do Araripe e o Luiz do Mundo", afirma Fontes. "É Luiz do Araripe porque é o Luiz da mãe, da Santana, da família, da casa. E quando ele rompe com essa muralha, rompe também com a mãe. Nesse processo, o filme não o acompanha, mas fica com a mãe. Ele se mantém circunscrito nessa muralha."
É como se "Légua Tirana" fosse uma obra complementar a "De Pai para Filho", a primeira cinebiografia do rei do baião, de 2012, dirigida por Breno Silveira. Naquele filme, a história de Gonzaga é narrada através de sua relação conflituosa com o filho Gonzaguinha, nascido no Rio de Janeiro.
Há pelo menos duas cenas que se repetem nessas obras, mas de pontos de vista diferentes. "O filme do Breno acompanha de fora, e a gente, de dentro", afirma Fontes. E se o filme de Silveira tinha o pai, Januário, como força antagônica, quem agora ocupa esse lugar é a mãe, Santana, ele acrescenta.
Outra figura que dialoga com o filme de 13 anos atrás é Chambinho do Acordeon, que se tornou uma figura conhecida em todo o Nordeste pelo talento com o instrumento e também por dar vida a Gonzagão nas telonas. Ele agora volta ao papel, desta vez para incorporar um rei do baião mais velho.
Chambinho conheceu Marcos Carvalho em Exu, no centenário de Gonzaga, quando o diretor fez a proposta a ele. "Confesso que fiquei com um pé atrás por já ter interpretado Luiz Gonzaga anteriormente", diz. "Mas quando ele me mandou o roteiro, me apaixonei."
O ator ficou seduzido pela ideia de ver na tela uma "criança vivendo no sertão e absorvendo aquele universo", que inclui "bandas de pífanos, repentistas, emboladores, o coco, os aboios". "Consegui visualizar um gênio da música popular brasileira nascendo no sertão de Pernambuco e levando consigo todas as suas origens. Tudo isso ele aplica no seu instrumento e na sua voz."
Ele conta que apenas tranquilizou o jovem Kayro Oliveira nas filmagens, mas afirma que, para viver o artista, um mito nordestino, é preciso se esquecer um pouco do Gonzaga gênio. "A gente teve que se atrelar ao ser humano Luiz Gonzaga. O filho de Januário e dona Santana. Com toda sua vontade de vencer, mas todas as preocupações —de um matuto, sertanejo, nas brenhas do sertão. E no século passado."
Há outra forma de dizer que o filme busca no humano os elementos que fizeram dele um mito —"Légua Tirana" busca o que há de sertão no rei do baião. "Em época de São João, você olha para o céu e vê uma bandeira tremulando com a imagem de Luiz Gonzaga estampando o infinito", diz Carvalho. "Nasci no sertão, sou apaixonado por ele. E Gonzaga o representa de uma forma poética, bonita —é a tradução do sertão."
Légua Tirana
- Onde: Em cartaz nos cinemas
- Classificação: 14 anos
- Elenco: Luiz Carlos Vasconcelos, Claudia Ohana, Tonico Pereira
- Direção: Marcos Carvalho, Diogo Fontes
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