Big Brother sul-africano
Confira a coluna de domingo (18)
O enredo do romance “1984”, de George Orwell, faz uma crítica incisiva ao autoritarismo, à manipulação da verdade e ao desrespeito pela privacidade, práticas características dos regimes autocráticos. No livro, o Ministério da Verdade é responsável pela falsificação de dados históricos. Sua função principal é alterar todos os aspectos da vida dos cidadãos, pela manipulação da linguagem, sob a vigilância do Big Brother.
No Brasil, a Constituição de 1988 garante a inviolabilidade da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, enquanto a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) estabelece sanções para quem descumprir essa norma.
Nos EUA, o “Privacy Act”, de 1974, regulava a coleta, manutenção, utilização e disseminação dos dados em poder dos órgãos federais. Cabia a cada departamento desenvolver seus próprios sistemas, desconectados dos demais, para preservar a autonomia de cada órgão e a privacidade dos seus funcionários.
Com uma canetada, Trump jogou tudo isso abaixo. Desde março, os cadastros dos ministérios e as agências foram capturados por um mega arquivo, sob a custódia do Doge (Departamento de Eficiência Governamental). Ou seja, os dados pessoais de todos os funcionários governamentais foram trancados numa sala e a chave entregue a Elon Musk.
Noticiou-se que Elon Musk saiu do governo, mas não houve um anúncio formal. Com ou sem ele, os funcionários que ele contratou seguem desenvolvendo um sofisticado sistema de vigilância, que utilizará a IA para analisar todas as mensagens trocadas via internet pelos servidores públicos. Os pedidos de visto para entrar no país, seja para turismo, estudos ou trabalho, serão doravante submetidos também a uma avaliação das redes sociais dos solicitantes, com o objetivo declarado de para reduzir fraudes e identificar indivíduos em situação irregular.
Quem garante, porém, que os dados serão tratados com espírito público, respeito à lei e à intimidade dos cidadãos? Cumpre ter presente que o Doge não é um ministério tradicional. Foi criado por decreto presidencial (“executive order”) e integrado ao gabinete do presidente. Embora tenha acesso à documentação e aos sistemas digitais do governo, atua sem regras ou limites predefinidos. Tudo muito informal, antiburocrático. E suspeito.
Os imigrantes têm sido, até aqui, os principais alvos do Doge. Os que entravam com processos para obtenção dos “green cards”, que lhes permitem trabalhar legalmente, de há muito recebiam instruções de seus advogados para declarar o endereço e pagar os impostos, uma vez que o IRS (o Leão americano) não transmitia as informações à Imigração. Ao ser forçada a mudar o protocolo, Melanie Krause, diretora do IRS, renunciou, junto com vários assessores.
Os imigrantes não são as únicas vítimas da bisbilhotagem. Funcionários do Barnard College, de Nova Iorque, onde houve manifestações contra Netanyahu, receberam em seus celulares um questionário do Doge, com perguntas sobre suas preferências político ideológicas. Há relatos de que o pessoal recrutado por Elon Musk, jovens peritos em informática que sequer completaram seus cursos universitários, tentaram subornar ou intimidar servidores dos Departamentos da Justiça e do Trabalho para obter acesso aos arquivos.
Por sua vez, o Departamento da Saúde anunciou que vai criar, com apoio do Doge, um registro de indivíduos com autismo, a fim de estudar as causas do transtorno, o qual, segundo o ministro Robert Kennedy Jr., seria provocado pelas vacinas. O assunto ganhou as manchetes depois que um pai de duas crianças autistas entrou na Justiça com uma ação para bloquear a “pesquisa”.
A Suprema Corte deverá se pronunciar sobre a matéria, até porque um dos processos alega que a concentração de dados no Doge incentiva a pirataria e, por consequência, fere a segurança nacional.
O Google e outros motores de busca assustam muita gente pela capacidade de acumular informações sobre os usuários. A coleta de dados pelo Doge seria ainda mais assustadora, se usada contra adversários, políticos ou não. Elon Musk nunca afastou essa possibilidade. Como um Big Brother que tudo vê e nada explica, não diz sequer se saiu do governo e, se saiu, se mantém o acesso aos dados coletados.
MATÉRIAS RELACIONADAS:



