“Bondes eram o ponto de encontro dos apaixonados”, diz agitador cultural
Raimundo “Gentileza”, conhecido por levar cultura ao Morro dos Alagoanos, conta que sente saudades da antiga Vitória
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“Na vida, às vezes, muitos demoram a entender a própria missão. Para mim, isso nunca aconteceu.
Sou de família humilde, um capixaba de Vitória, com origem pernambucana, mas as barreiras físicas e invisíveis nunca me impediram de sonhar. Eu sempre soube da minha vocação cultural. Respiro cultura desde os 11 anos de idade.
Nós, capixabas, somos rodeados por tradições culturais. A nossa culinária é marcante e apreciada por todo o Brasil, por exemplo. Nosso modo de viver mudou muito nos últimos anos, admito, mas foi assim em todas as capitais.
Nostalgia
Tenho nostalgia da antiga Vitória, e, durante a minha trajetória, vejo alguns dos nossos ícones como verdadeiros personagens da cidade. O principal deles eram os bondes, por exemplo.
Os bondes eram o ponto de encontro dos casais apaixonados. Lembro-me de já ter ido a um encontro amoroso para fazer esse passeio.
Eles cruzavam toda a cidade para ligar o centro de Vitória à Praia do Canto e se integravam ao cotidiano capixaba.
Que saudade tenho dos bondes! Era o melhor transporte de Vitória, porque nos permitia conhecer gente, sentir a brisa do mar e ver a cidade por ângulos únicos, que não saem da memória. Era, sem dúvidas, a mais bela rota de bonde do País.
Transformações
Quando eu era criança, todos os morros em volta do Centro eram florestas e, conforme a população chegava de outros lugares em busca de trabalho, a ocupação vinha acompanhada da construção de uma cultura popular genuinamente capixaba, da união dos povos.
Vitória sempre foi uma cidade linda, charmosa e romântica, inclusive. A cultura era efervescente, se fazia presente e agitava o cenário local. Os cinemas de rua eram uma tradição no centro de Vitória, com filas que davam voltas nos quarteirões.
Preconceito
Não é novidade, contudo, que nós, do Morro dos Alagoanos e de outros morros, não recebíamos a atenção necessária do poder público, principalmente na área cultural. A cultura cria pertencimento, dá autoestima e combate a exclusão social. Quando se diz que mora no morro, lá embaixo, a rejeição ainda existe.
Eu não aceito, e, por isso, dediquei a minha vida a construir outras representações a nós, do Morro dos Alagoanos. Aqui, só passa gente bonita e educada. Moças lindas me abraçando, rapazes bonitos me cumprimentando, senhoras e senhores.
Eu rompi essa barreira e sou respeitado em qualquer lugar da cidade, mas não é a realidade de todos daqui.
Escada da Gentileza
Foi por isso que, há 25 anos, decidi fazer a Escada da Gentileza, e daí veio o apelido Raimundo “Gentileza”. Eu senti que precisava alegrar o dia a dia dos moradores. Pintei a escada, e, logo depois, percebi que faltava algo. Decidi escrever nela, e, assim, estimular os cumprimentos de “bom dia”, “boa tarde”, “boa noite”.
Com a velocidade da rotina, ninguém contempla a vida. A pressa substitui a contemplação, mas, com a arte, acredito que consigo aguçar a sensibilidade e a gentileza nas pessoas, apesar da correria.
Cultura
Nunca precisamos tanto de cultura e de arte para levar a vida. Hoje, há diversos editais e oportunidades para construir um projeto cultural, o que é um grande avanço para a sociedade capixaba. Vivemos, talvez, um dos melhores momentos da cultura no Estado.
Em relação à gentileza, no entanto, vivemos tempos melhores no passado. As pessoas eram mais educadas, tinham tempo, brigavam menos, se saudavam. Por isso, levar a arte e a cultura para o cotidiano é tão importante: elas são poderosas aliadas da gentileza, da inclusão, do respeito ao próximo e da identidade de um povo”.
PERFIL
> Raimundo de Oliveira da Silva, de 76 anos, conhecido popularmente como Raimundo “Gentileza”, é morador e agitador cultural do Morro dos Alagoanos, em Vitória.
> É criador do Festival de Música de Botequim (Femusquim) e promove diversas ações de gentileza no Morro dos Alagoanos, como a fundação da “Escadaria da Gentileza”, o plantio de árvores, a pintura de muros e a criação de uma biblioteca para a comunidade.
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