Onda de calor faz usuários da cracolândia trocarem cachaça por água
"Muitas vezes a gente nem sabe de onde vem essa água", contou um dos moradores da região
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A dificuldade em conseguir água para sanar a sede ou se refrescar das altas temperaturas tem feito usuários de drogas da cracolândia (no centro de São Paulo) a beberem líquidos sem saber a origem.
Diferente de outros pontos da capital em que há concentração de pessoas em situação de rua, a Prefeitura de São Paulo não instalou tendas da operação Altas Temperaturas na cracolândia. Os equipamentos da ação distribuem água e frutas para a população.
Em nota, a gestão Ricardo Nunes (MDB) declarou que a distribuição de água às pessoas em situação de rua na região da Luz é feita diariamente pelas equipes do Serviço Especializado de Abordagens Sociais. Conforme a prefeitura, estava previsto, na noite desta quinta (16), o reforço da oferta de água às pessoas em situação de vulnerabilidade no entorno da cracolândia.
A reportagem esteve nesta quinta no fluxo, como é chamada a aglomeração de usuários, na rua dos Protestantes, no bairro Santa Ifigênia, e ouviu histórias de como a sede é contida em dias quentes —a temperatura ultrapassou os 37°C esta semana na cidade.
Com o sol entre nuvens, mas com um clima abafado, Sócrates Melo Dantas, 41, usava apenas uma bermuda. O homem tinha em uma das mãos uma garrafa de água distribuída durante uma atividade de um grupo que atua na redução de danos no local. Em um gole ele tomou os 500 ml armazenados dentro do recipiente.
Segundo ele, usuários aparecem no fluxo com garrafas de água e as oferecem por valores simbólicos, tudo na tentativa de obter valores para comprar drogas e também ajudar quem não consegue deixar o fluxo.
"A única forma de tomar água é comprando da mão do próprio usuário. Muitas vezes a gente nem sabe de onde vem essa água", disse.
O calor, inclusive, alterou por alguns instantes a cena diária da cracolândia. Situação incomum das últimas vezes em que a Folha esteve no local, nesta quinta era mais fácil visualizar usuários com garrafas de água na mão, fossem elas cheias ou vazias, do que segurando pequenos frascos de cachaça.
Marco Antônio, 33, estava quase preparado para enfrentar o tempo abafado. Ele tinha duas garrafas pequenas em uma das mãos e segurava uma sacola com a outra. Dentro do saco ele carregava mais três garrafas. Todas elas estavam vazias, mas sua intenção era enchê-las. "Comércio nenhum dá água, porque somos da cracolândia", disse ele.
Questionado sobre se venderia as garrafas no fluxo, ele afirmou que não, uma vez que seria vetado tal tipo de comércio no local. No entanto, ele relatou que alguns dos usuários ajudam com pequenos valores, em geral de R$ 0,20 a R$ 0,50.
O homem disse na atual onda de calor, faz o percurso para encher suas garrafas de três a quatro vezes por dia. Enquanto conversava com a reportagem, ele conseguiu encher seus objetos em um teatro na mesma rua do fluxo, mas disse que nem sempre tem essa sorte. Quando não, ela busca água no parque da Luz ou no estacionamento da estação de trem.
"Essa semana toda está difícil. A prefeitura não deixa um local para tomar água ou ir ao banheiro. A gente vai se virando. Na Luz tem fila, a água é fraca e morna."
Um outro usuário, que não se identificou, disse que estava derretendo diante da temperatura. Segundo ele, a tentativa de obter água por vezes é constrangedora, já que muitos lugares negam.
A tentativa de se refrescar também requer traquejo, um pouco da boa malandragem de quem há cerca de 30 anos vive nas ruas de São Paulo.
"Se você tem R$ 1 é pedir um café [em um bar] e aproveitar para tomar três copos de água", resumiu Jailson Antônio de Oliveira, 54.
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