Disputa por território pode fazer com que 30 mil pessoas mudem de cidade no Nordeste; entenda
No próximo ano, cerca de 30 mil pessoas que hoje são de Aracaju, capital de Sergipe, poderão se tornar cidadãs da vizinha São Cristóvão. A explicação está em uma decisão judicial que obriga Aracaju a devolver uma área de 20,78 km² a São Cristóvão. O governo do Estado, inclusive, já anunciou que vai coordenar a realização de um estudo técnico para avaliar a atualização dos limites cartográficos entre as duas cidades, após audiência de conciliação realizada com a Justiça Federal e as prefeituras.
A previsão é de que o estudo comece no próximo mês e seja concluído até abril de 2026, com etapas que incluem análise cartográfica, escutas populares, estudos de área e a elaboração de uma nova proposta.
A área em disputa representa 11,4% de toda a capital sergipana e teria sido anexada de forma irregular a Aracaju. No território, equivalente a 2 mil campos de futebol, estão escolas, unidades de saúde e duas praias bastante procuradas pelos turistas.
A prefeitura de Aracaju diz ter entrado com ação rescisória no Tribunal Regional Federal para tentar reverter a decisão judicial. Alega que investe R$ 165 milhões na área que vai perder e que não foram levados em conta os impactos sociais para a população local.
Na decisão, a Justiça determinou que o governo de Sergipe e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) adotem medidas para fazer a revisão territorial. Na audiência de conciliação ficou definido que um novo estudo se faz necessário porque a legislação de 1954, utilizada como referência pela Justiça Federal, estabelece marcos considerados difusos e imaginários, o que dificulta a identificação clara dos limites.
“Todo o procedimento seguirá estritamente o que foi definido pela decisão judicial já transitada em julgado”, diz o governo. “Importante destacar que o processo se dará de forma gradual, com diferentes fases de estudo e diálogo com a população, e que a decisão final não caberá ao Poder Executivo estadual, mas, sim, à Justiça Federal, à qual será apresentado o parecer conclusivo”, diz, em nota.
Com a mudança na divisa, parte dos bairros da Zona de Expansão de Aracaju, como Santa Maria, Mosqueiro, Robalo, Areia Branca e Matapuã passarão a integrar o município de São Cristóvão. O Mosqueiro é um dos principais pontos turísticos da capital, com praias de águas quentes, coqueirais e condomínios de luxo.
A população de São Cristóvão, de 95 mil habitantes, vai chegar a 125 mil. Já Aracaju cai de 603 mil para 573 mil moradores.
A transferência envolve 6,7 mil imóveis, 14 escolas com mais de 6 mil alunos, três postos de saúde e 31 km de ruas pavimentadas, além de redes de água e energia, praças e áreas verdes. A receita de Imposto Predial e Territorial Urbano nessa região é estimada em R$ 5,2 milhões anuais, dinheiro que passaria de uma cidade para a outra.

Ação tenta mudar decisão judicial
A Procuradoria-Geral do Município de Aracaju (PGM) ingressou com Ação Rescisória no Tribunal Regional Federal da 5.ª Região (TRF-5) para assegurar o reconhecimento da Zona de Expansão como território aracajuano. A medida pretende reverter decisão judicial que, segundo a prefeitura, desconsiderou mais de 70 anos de administração da capital sobre a área, onde a Prefeitura mantém serviços públicos essenciais. O caso ainda não foi julgado.
De acordo com a PGM, a ação está fundamentada na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que determina que decisões judiciais levem em conta as consequências práticas para a sociedade. “O que buscamos com a Ação Rescisória é que o Tribunal avalie a situação da Zona de Expansão de acordo com a realidade concreta da região, considerando o sentimento de pertencimento da população e, principalmente, as consequências de uma eventual transferência para São Cristóvão”, diz o procurador-geral Hunaldo Mota.
Segundo ele, não se trata apenas de uma questão constitucional, mas de analisar os impactos sociais, econômicos e estruturais que nunca foram devidamente apreciados nos processos anteriores. Na área da educação, a prefeitura de Aracaju mantém 14 escolas municipais, que atendem 6.405 estudantes, com custo mensal de R$ 3,3 milhões.
Na saúde, são três Unidades de Saúde da Família, responsáveis pelo atendimento de 32.837 pessoas, com investimento de R$ 674 mil mensais. Além da manutenção de serviços, a administração executa obras estruturantes por meio do Programa Aracaju Cidade do Futuro, que contempla investimentos de R$ 165 milhões em macrodrenagem e urbanização nos bairros Mosqueiro e Areia Branca.
Parte dos recursos é financiada com empréstimo de US$ 84 milhões do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB). O projeto inclui canais de drenagem, ciclovias, avenidas, pavimentação, plantio de 6.500 árvores e a desapropriação de mais de 1 milhão de m². Segundo a PGM, retirar a administração da Zona de Expansão de Aracaju comprometeria diretamente a continuidade dos serviços.
O orçamento anual de São Cristóvão é de R$ 352 milhões, valor que seria insuficiente para custear a manutenção da região, que hoje demanda R$ 10,7 milhões por mês. “É preciso avaliar se o município vizinho teria condições de assumir, da noite para o dia, escolas, postos de saúde, coleta de lixo e toda a infraestrutura em funcionamento, além das obras em execução financiadas por organismos internacionais”, diz Mota.
Ele afirma que a responsabilidade de Aracaju pela gestão da Zona de Expansão já foi reconhecida em decisões anteriores da Justiça Federal e do Ministério Público, que atribuíram à prefeitura ações como a regularização de loteamentos, implantação de infraestrutura urbana e fiscalização ambiental.
A Procuradoria lembra ainda que o acesso viário à região se dá exclusivamente por Aracaju, sem ligação direta com São Cristóvão, e que os moradores se identificam como parte da capital, reforçando o vínculo histórico, social e cultural.
O prefeito de São Cristóvão, Júlio Nascimento (União), diz que a cidade está preparada para assumir o território. “A disputa pela Zona de Expansão não é sobre narrativas, é sobre justiça e verdade histórica. São Cristóvão sempre foi dono desse território, que nos foi retirado de forma irregular. Hoje, com a decisão do Supremo Tribunal Federal, estamos garantindo o que é nosso por direito.”
Ele lembra que o município foi a primeira capital de Sergipe e considera “uma falácia” dizer que São Cristóvão não tem condições de assumir os bairros que estão na Zona de Expansão. “A verdade é que essas áreas sempre pertenceram a São Cristóvão e isso foi reconhecido pela Justiça de forma definitiva. Estamos falando do restabelecimento de laços históricos. Vamos cuidar do que é nosso.”

O governo do Estado reforça ainda que sua atuação se dá em caráter de colaboração com a Justiça, contribuindo para que o processo ocorra com a devida segurança técnica e jurídica.
O IBGE diz que segue as divisões territoriais definidas oficialmente pelo Poder Público. “Quaisquer atualizações nos dados referentes a municípios do país só ocorrerão quando e se as eventuais redefinições territoriais forem oficializadas.”
Contexto histórico
A cidade de São Cristóvão é conhecida pelo seu patrimônio histórico, como a Praça São Francisco, tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e declarada pela Unesco como patrimônio da humanidade. Em junho de 1820, quando Dom João VI decretou a emancipação de Sergipe da Bahia, São Cristóvão tornou-se a capital do novo Estado.
Em março de 1855, atendendo a pleito dos senhores de engenho que precisavam de um porto para escoar a produção de açúcar, a capital foi transferida para Aracaju. Historiadores afirmam que, em 1954, quando a cidade enfrentava crise de energia elétrica, o prefeito de São Cristóvão cedeu sua área litorânea à capital em troca da instalação de um gerador elétrico na cidade.
Atualmente, a maior concentração populacional de São Cristóvão está na região do Jardim Rosa Elze, que fica mais próxima de Aracaju - a 10 km do centro da capital. Os 55 mil moradores dessa região trabalham e usam serviços públicos, como transporte coletivo e unidades de saúde, de Aracaju. O bairro se expandiu após a instalação do campus da Universidade Federal de Sergipe (UFS), que impulsionou o desenvolvimento da região.
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