Combate à violência contra a mulher deve ‘sair do discurso e entrar no recurso’, diz especialista
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Nas últimas semanas, uma série de casos de violência contra a mulher chocou o País, principalmente pela magnitude das agressões e por haver registros em vídeo. Um homem foi preso no Rio Grande do Norte após dar mais de 60 socos no rosto da então namorada. Ela precisou passar por cirurgia complexa de reconstrução facial.
Em São Paulo, um fisiculturista foi preso com uma fratura na mão após agredir a então namorada em Moema, na zona sul da capital. Além disso, no interior do Estado, uma adolescente de 15 anos foi morta e esquartejada, supostamente pelo então namorado, também adolescente, e uma ex-namorada do garoto.
O caso mais recente de grande repercussão aconteceu no Distrito Federal, em que câmeras de segurança flagraram um empresário agredindo a mulher dentro do elevador do prédio em que moravam. A vítima passou cinco dias no hospital para se recuperar. O agressor foi preso.
De acordo com Beatriz Accioly, líder de Políticas Públicas pelo Fim da Violência Contra a Mulher no Instituto Natura, organização sem fins lucrativos voltada para o desenvolvimento humano na América Latina, os casos evidenciam a gravidade da violência doméstica que ainda acontece no País, mesmo com o avanço na legislação e em políticas públicas, desde a criação da Lei Maria da Penha, que nesta quinta-feira, 7, completou 19 anos.
“Infelizmente, esses últimos casos que a gente acompanhou nas últimas semanas retratam uma realidade que é muito presente no Brasil há muitas décadas. Talvez o grande diferencial tenha sido o acesso a essas imagens, o registro disso, porque a maior parte da violência contra a mulher é familiar, acontece em contextos privados e as pessoas não têm acesso ao que aconteceu“, diz a especialista, doutora em Antropologia pela Universidade de São Paulo (USP).
Beatriz defende que é preciso alertar a sociedade sobre os tipos de violência contra a mulher que muitas vezes podem anteceder a uma agressão física ou caso de feminicídio. E cobrar políticas públicas concretas, focadas nas condições de mulheres de diferentes partes do País - o perfil das vítimas e acesso à ajuda pode mudar muito de região para região, diz a especialista, autora de três livros sobre violência e acesso da mulher a direitos.
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Há um aumento na violência contra mulheres nos últimos meses ou a exposição e repercussão desse tipo de caso se tornaram maiores?
Infelizmente, esses últimos casos que a gente acompanhou nas últimas semanas retratam uma realidade que é muito presente no Brasil há muitas décadas. Talvez o grande diferencial tenha sido o acesso a essas imagens, o registro disso, porque a maior parte da violência contra a mulher é familiar, acontece em contextos privados e as pessoas não têm acesso ao que aconteceu.
O grande diferencial das tecnologias de comunicação e informação é esse, a gente tem um acesso a uma realidade que é muito íntima. Mas, infelizmente, sabemos que, de acordo com pesquisas significativas feitas no Brasil, há cerca de 5,5 milhões de mulheres brasileiras acima de 16 anos vivendo a violência doméstica anualmente. Ou seja, a gente teve acesso a esses casos visualmente muito chocantes, mas tem muita situação de violência doméstica acontecendo que a gente não acessa, não consegue ver.
Dados mostram que os registros em serviços públicos de casos de violência têm aumentado a cada ano. O que isso significa?
A gente percebe um cenário em que há três fenômenos acontecendo ao mesmo tempo. Nas últimas duas décadas, tivemos um avanço significativo nos sistemas oficiais de registro da Segurança Pública e da Saúde, além das classificações dos crimes, já que a Lei Maria da Penha descreveu os diferentes tipos de violência e houve a criação da Lei do Feminicídio. Isso significa que, vários casos que não entravam nas estatísticas oficiais, agora passaram a ser registrados e contabilizados - antes, eles eram enquadrados de forma genérica, como lesão corporal, briga de família ou nem viravam uma ocorrência ou uma notificação.
A gente tem também mais consciência social e reconhecimento das violências. O movimento de mulheres em prol de direitos, as campanhas públicas e a cobertura da imprensa ajudaram a ampliar o entendimento de que a violência doméstica e familiar é um problema maciço no Brasil, que tem diferentes formas de violência, não só a física, como também a psicológica, as violências patrimoniais e a violência sexual, que também são crimes - não são assuntos privados, são tão graves quanto a violência física. Essa mudança cultural faz com que mais mulheres denunciem e mais pessoas percebam esse tipo de situação no cotidiano.
E, em terceiro lugar, a gente tem, sim, a persistência e, em alguns casos, o aumento das diferentes formas de violência contra a mulher, entre elas a letal e a extrema, que é o que a gente viu nesses últimos casos, registrados até visualmente. Mesmo com o aumento da conscientização social e o avanço nas políticas públicas, nos serviços, a gente percebe que os indicadores de feminicídio no Brasil se mantêm altos e, em alguns Estados, eles ainda aumentam. Isso mostra que não são só mais registros: existe uma violência estrutural e letal que continua acontecendo.
A gente sabe que, nos últimos anos, existe uma contra força de movimentos de desqualificação da luta pelo direito das mulheres e em especial do combate à violência doméstica e familiar. Então, a gente tem esse cenário que combina diferentes fenômenos.
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A Lei Maria da Penha completou 19 anos esta semana e foi um grande avanço no combate à violência contra a mulher. Mas em que ponto o Brasil ainda precisa melhorar em termos de legislação e políticas públicas?
O Brasil avançou muito nas últimas décadas. Nem todo mundo sabe, mas o Brasil é considerado um exemplo em políticas públicas e legislação de resposta à violência contra as mulheres - talvez, justamente pelo fato desse ser um problema tão grave e de já termos pecado tanto enquanto sociedade em responder a isso. E continuamos pecando, sendo negligentes na resposta a isso. Mas, a gente tem esses marcos, como a Lei Maria da Penha, a Lei do Feminicídio, e as próprias delegacias de defesa da mulher, que são criações brasileiras que depois foram adaptadas em outros países.
A gente tem um desafio estrutural. Nós, que trabalhamos nesse ecossistema, costumamos dizer que o papel aceita tudo. Criar uma lei ou uma política pública na sua concepção, no seu desenho, é fácil. O desafio é colocar isso em prática, é fazer com que isso saia da norma e se torne vivência para a população. Esse é o grande desafio que a gente tem no Brasil: transformar direitos em realidade para todas as mulheres, em todos os territórios. E, para avançar, a gente precisa investir massivamente nesse tema, que infelizmente ainda é tratado como algo da esfera da moral, da cultura, e não como um elemento de gestão pública, que precisa de orçamento, indicadores e prioridades.
Como fazer isso na prática?
Costumo dizer que esse tema precisa sair do discurso e entrar no recurso. A gente precisa fortalecer a rede de atendimento e de enfrentamento, em especial fora das capitais do Brasil, para garantir resposta rápida e eficaz às denúncias, aos pedidos de apoio. A gente precisa avançar com essa rede, porque os serviços são entregues por diferentes setores - pela saúde, pela assistência social, pela segurança pública -, embora a maior parte da população só pense na polícia, imediatamente. Precisamos que essa resposta funcione mesmo de maneira articulada, integrada em rede e que olhe para a jornada da mulher, cidadã, usuária dos serviços nas suas necessidades.
Enfrentar a violência contra as mulheres não é responsabilidade de um setor isolado, mas de todo o Estado brasileiro, de toda a sociedade brasileira. É uma responsabilidade coletiva que tem que ser mais comprometida. Só assim a gente vai sair de um ciclo de respostas pontuais, ineficientes e negligentes para construir uma política pública sólida, capaz de salvar vidas e de mudar de verdade a mentalidade e o comportamento da população.
Endurecer as penas para violência doméstica, incluindo multas financeiras aos agressores, pode ajudar a combater essa realidade?
A questão do ressarcimento financeiro, por exemplo, já está prevista na nossa lei, a gente tem isso. Mas, o que a gente sabe, estudando Direito Penal, é que as penas mais graves não necessariamente inibem crimes e violências. Algo que acho muito importante, que dialoga com o trabalho que fazemos no Instituto Natura, é a importância de nomear e reconhecer as violências como tais, tanto do ponto de vista jurídico, quanto social. Porque o que não é nomeado, permanece invisível.
Quando a gente pega uma série de comportamentos que às vezes são pormenorizados, como esse é o temperamento de o homem ser mais agressivo, muito ciumento, e a gente dá o nome correto, ‘isso é violência psicológica’, ‘isso é violência patrimonial’, a gente está dizendo que aquilo não é normal, não é aceitável, não é uma escolha individual, não é uma questão privada. Isso é fundamental para que a gente reconheça socialmente que aquilo é uma experiência de violação de direitos. E, em especial no Direito, só é definido, só é reconhecido aquilo que pode ser enquadrado, denunciado e julgado enquanto uma forma de violência, enquanto um crime. Se não há nome, não há tipificação penal, não há registro formal, não há responsabilidade do Estado.
Por isso o Agosto Lilás?
Essa é a nossa campanha deste ano para o Agosto Lilás, inclusive, de que nomear é a primeira etapa para gerar um reconhecimento público de que isso está acontecendo. Um reconhecimento de que isso não é normal, é grave e precisa e merece uma resposta pública embasada, com orçamento, com serviços e com prioridade. Além disso, nomear também é um ato pedagógico, pois educa a sociedade sobre o que constitui algo inaceitável. Então, com tempo a gente precisa avançar ainda mais sobre isso.
Embora a Lei Maria da Penha tenha 19 anos, a gente sabe pela pesquisa nacional sobre violência contra a mulher do Senado, que somente duas em cada dez brasileiras consideram que conhecem bem os mecanismos de proteção da Lei Maria da Penha. Então, como é que você vai lançar mão de uma ferramenta, se você não sabe o que ela tem a te oferecer? É fundamental que a gente amplie a nossa conversa. Acho que a Lei Maria da Penha já avançou muito em conhecimento público, mas precisamos aprofundar a conversa e, sobretudo, nomear como violência, como intolerável, muito do que é visto como normal, como fruto de um traço cultural, um temperamento individual.
Nomear é reconhecer, tornar visível como a gente pode responder e, inclusive, responsabilizar o Estado se ele não responder. Porque se o Estado é notificado, se ele fica sabendo que algo acontece a essa mulher enquanto ela está sendo atendida pelas políticas públicas, o Estado também foi negligente.
Quais são os tipos de violência contra a mulher e como identificá-los?
Dentro da Lei Maria da Penha, a gente está falando de violência doméstica e familiar, que são violências que acontecem num contexto de relações amorosas, de relações de afeto, de proximidade. Então, vou me concentrar nessa forma de violência contra a mulher - porque há violências que acontecem em outros contextos.
São cinco formas de violência que a lei descreve. Tem a violência física, que a gente conhece mais e que por muito tempo se associou (a violência contra a mulher) somente a ela, com aquelas imagens de campanhas da mulher com olho roxo, machucada - algo que é muito comum, mas a violência contra a mulher não se resume só a isso. A violência psicológica, sobre a qual a discussão precisa avançar ainda mais, porque é difícil de reconhecer, mas envolve o menosprezo, a desqualificação, a manipulação, o controle excessivo sobre essa pessoa.
A violência patrimonial, que me causa grande preocupação, porque acho que é sobre a qual a gente conversa ainda menos. É o controle financeiro, mas não somente. Muitas vezes, há subtração dos documentos - isso é muito comum. É o controle sobre as redes sociais, sobre o trabalho, quando a mulher não pode trabalhar, não tem acesso à conta do banco... A gente tem conversado muito pouco sobre e nomeado muito pouco a violência patrimonial. E ela é muito grave. Vou dar um exemplo: subtrair os documentos e quebrar o celular - que é algo que a gente encontra muito nos relatos - impede que a mulher faça uma denúncia. Como é que você vai fazer uma denúncia sem documentos, sem conseguir chamar a polícia? Isso é muito comum.
Temos a violência moral, que é comprometer a imagem daquela mulher na sociedade. É levantar ofensas, atribuir a ela comportamentos que são condenáveis, difamá-la. E a violência sexual, que dentro do contexto, sobretudo dos relacionamentos afetivos, a gente conversa também muito pouco. O estupro marital, o estupro em relacionamentos, em namoros, é uma das formas de violência descrita pela Lei Maria da Penha que acontece no contexto doméstico e familiar.
Eu posso ainda fazer um adendo de que, em tempos digitais, violências que acontecem intermediadas pela internet também são violência doméstica e familiar. Então, vazamento de imagens, manipulação de vídeos, ameaças, invasões de dispositivos, tudo isso, dentro do contexto de uma relação afetiva ou familiar, também está previsto como violência na Lei Maria da Penha.
Se você pudesse mandar um aviso para as mulheres, em geral, para evitar novos casos como os que temos visto, que tipo de aviso você daria?
Se eu pudesse mandar uma mensagem - acho que para a população brasileira como um todo, mais do que para as vítimas, porque esse é um problema muito generalizado - eu diria: sejamos rede, sejamos apoio, saibamos escutar e acolher relatos. Porque a gente diz muito para as vítimas quebrarem o silêncio, buscarem as políticas públicas... a gente põe muita responsabilidade em quem está sendo violado.
Alguns desses últimos casos mostraram a importância da intervenção, por exemplo, dos funcionários dos condomínios que identificaram o que estava acontecendo e alertaram as autoridades (no caso da mulher agredida dentro do elevador do prédio em que morava, em Natal). Então, diria para que a gente, como sociedade, aprenda a se colocar do lado da justiça, do lado da proteção dos direitos e aprenda a ser apoio. Isso tem faltado muito.
Por isso, também, esse é um tema que fica tanto ainda no privado. Se coloque essa pergunta: Se uma mulher viesse te contar uma situação de violência, uma mulher que você ama, uma mulher próxima a você, você saberia como reagir? Você saberia como fazer para apoiá-la? Você não precisa ser especialista, mas precisa ser humano. Eu acho que eu deixaria essa mensagem.
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