“Há uma cegueira que impede que os idosos sejam vistos”
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No mercado de trabalho, nas universidades, no comércio, dentro de casa. Os idosos estão em todos os lugares e estarão ainda mais presentes nas próximas décadas. Mesmo assim, seguem sem serem vistos pela sociedade, alerta a pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Envelhecimento da PUC-SP (Nepe/PUC-SP), a jornalista e professora Beltrina Côrte.

Até 2060, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que 25,49% da população brasileira terão mais de 60 anos. Isso representa um crescimento de 15,34% em relação a 2021.
Côrte analisa a existência de uma “cegueira” que impede as pessoas de enxergarem os idosos e até mesmo de se enxergarem como idosos.
“Muitos de nós não nos vemos como pessoas velhas, assim designadas. Mesmo quem já tem uma idade avançada, se refere à velhice como se não fizesse parte dela”, aponta.
A especialista reforça ainda que a velhice é o destino de todos e, se nada for feito, todos sentirão as consequências da invisibilidade social.
A Tribuna – Na sua visão, a sociedade é “cega” em relação aos idosos ou até os enxerga, só que de maneira errada?
Beltrina Côrte – Acredito que a sociedade seja “cega” mesmo, como José Saramago narra em “Ensaio sobre a Cegueira”, quando ele escreve a epígrafe: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”.
Nós, velhos (me coloco nesse grupo, pois já estou com 62 anos), estamos em todos os lugares, por que a sociedade não nos vê?
Aliás, muitos de nós, velhos, não nos vemos como pessoas velhas, assim designadas. Vivenciamos a etapa da velhice, mas não nos incluímos nela quando falamos sobre o assunto.
- Como a pandemia evidenciou o preconceito aos idosos?
O preconceito em relação aos velhos sempre existiu, mas a pandemia trouxe tudo à tona, escancarou intensivamente, sem vergonha ou pudor algum.
Tivemos vários memes que percorreram o planeta e presenciamos como muitos governantes, entre eles o brasileiro, que simplesmente declararam que a vida dos velhos não valia nada.
Presenciamos dilemas com diversos médicos que tiveram que escolher quem poderia viver ou quem teria que morrer. Claro que o corpo velho sempre ficava em desvantagem.
- A invisibilidade dos idosos é diferente quando se é mulher?
É e não é. O homem velho costuma ser considerado charmoso, basta lembrarmos dos livros infantis, que colocam o homem velho como um mago e a mulher velha como bruxa.
Há uma cobrança contínua ao corpo da mulher, mais do que ao corpo masculino.
Por outro lado, temos visto em pesquisas que as mulheres conseguem envelhecer e lidar com a velhice de forma mais amigável porque aprenderam a ser multitarefas, enquanto os homens não. Mas isto está mudando com as gerações que estão chegando aos 60 anos.
Eu diria que a mulher, sendo vista ou não, ela vai mais à luta, fazendo-se enxergar. Os homens tendem a se recolher, mas as gerações que estão chegando estão mudando esse comportamento.
Mas se é mulher, preta e periférica, e o homem idem, diria que a invisibilidade é igual.
- Quais as consequências práticas da invisibilidade social dos idosos?
Não os vendo, ninguém faz nada por eles, nem eles próprios. Não se formula políticas sociais que deem suporte à dignidade na velhice, o mercado não pensa nas necessidades de corpos mais fragilizados que precisam de produtos para maior autonomia, enfim, não viabiliza o acesso a produtos e serviços que os capacitem a continuar a vida com o máximo de autonomia.
Portanto, se a sociedade continuar cega, ela está prejudicando e muito o futuro das gerações, deixando muitos em condições indignas de viver.
Vale lembrar, no entanto, que a velhice é o futuro de todos nós. Não tem como fugir disso.
- Como devemos construir outro caminho para a dignidade da vida na terceira idade?
casal de idosos passeia de mãos dadas: dados do IBGE apontam que em 2060 mais de 25% da população do Brasil terão idade acima dos 60 anos
Em primeiro lugar, tirando as “vendas” dos nossos olhos e pensando que a velhice é o futuro.
Refletir sobre o significado que a velhice tem hoje e o que se quer para o amanhã.
Lutar em todos os âmbitos, seja no trabalho, nos grupos sociais, na família, por fortalecimento de relações entre as diversas gerações, mais afeto e menos consumo, políticas sociais que deem suporte às famílias que tenham idosos mais fragilizados, espaços socioculturais, educativos e lazer para as diversas velhices. Afinal, a doença não é o nosso único destino!
Muitos idosos estão retomando ao mercado de trabalho e aos estudos depois dos 60, 70 anos. Como analisa esse comportamento?
A vida é simplesmente esse pulsar eterno, desejante, e que bom que se possa realizar os desejos, não importa a idade que a pessoa tenha.
Que o trabalho seja buscado não para a sobrevivência, mas porque ele ajuda na organização de nosso tempo. Para muitos, é o que dá sentido à vida.
Sempre sugiro buscar novos ares, novas habilidades e novos afazeres que deem sentido à nossa existência.
- Muitos idosos têm se tornado responsáveis financeiros pelas famílias, que perderam seus empregos em meio à pandemia. O que isso representa na sua opinião?
Em muitos municípios do País, os idosos são os responsáveis financeiros pela família. Graças à sua aposentadoria é que a família consegue sobreviver.
Com a pandemia, muitas famílias contaram apenas com a aposentadoria de um membro.
O que é muito triste, pois no momento em que a pessoa idosa estaria olhando para ela, teve que se tornar “invisível” para dar conta da subsistência de gerações mais novas, empurrando-os para uma velhice não tão digna assim, infelizmente.
- De que forma o avanço das tecnologias pode ajudar os idosos em qualidade de vida e acessibilidade?
Com a pandemia houve um êxodo para o mundo digital. Querendo ou não, todos nós fomos obrigados a nos relacionar com o mundo via a tecnologia. Alguns tiveram mais facilidade, outros contaram com menos acesso.
Alguns suportam melhor a pandemia porque contam com a ajuda da família para lidar com mil e uma ferramentas que até então eram desconhecidas.
A tecnologia veio para ficar, não tem volta. Com certeza poderá ajudar a dar maior qualidade de vida, desde que se tenha acesso a uma boa rede, bom pacote de dados, bons aparelhos e novas aprendizagens.
As tecnologias não podem, de forma alguma, aumentar o fosso das desigualdades.
Mas tecnologia é também ter um semáforo inteligente que dá segurança a quem atravessa a rua.
Temos que pensar na tecnologia possibilitando uma melhor qualidade de vida, seja urbana ou rural.
Quem é Beltrina Côrte
Jornalista
Mestre em Planejamento e Administração do Desenvolvimento Regional
Doutora e Pós-Doc em Ciências da Comunicação
Docente na Faculdade de Ciências Humanas e Saúde da PUC-SP
Coordena o Grupo de Pesquisa Longevidade, Envelhecimento e Comunicação
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