O ano da morte, o luto a seguir, o desejo a persistir
“O pulso ainda pulsa.” 2020 foi o ano da morte. Da morte viva, rondando os ares, os lares, todos os lugares... 2020 foi ano da morte. Da morte como pulsão, que, governante, reinou e pecou “por pensamentos, palavras, atos e omissões”.
“O pulso ainda pulsa.” 2020 termina sem acabar. Sua agenda mortífera segue desembestada, liberta de limites e imunizantes, a assassinar centenas, milhares, dia após dia, numa marcha fúnebre que persiste em nosso país, onde a morte corre solta.
“O pulso ainda pulsa.” O que foi, meu Deus, este 2020? A esta altura do texto, a resposta parece óbvia. Mas nem importa o intempestivo da questão só agora escrita, posto que a pergunta que se impõe, na inacreditável virada de ano em que não se pode dizer, a pleno pulmão, “adeus, ano velho!”, é mesmo esta: “o que terá sido 2020?”
“O pulso ainda pulsa.” Processar a tragédia e a infâmia de 2020 será talvez a maior tarefa de cada um e de todos nós no 2021 pós-vacina. Por ora, desde março estamos apenas ocupados em sobreviver, forjar alguma normalidade, ajambrar alguma rotina. Tentando fixar um cosmos no caos virótico.
“O pulso ainda pulsa.” Ninguém segue sem fazer o luto, seja sujeito, seja coletivo. Ao menos os que correm a vida na estrada da humanidade. Aos desumanos que habitam um corpo, mas padecem da falta do espírito – segundo Hannah Arendt, a capacidade de “pensar, querer e julgar” –, existir é uma banalidade, assim como o mal, a morte...
“O pulso ainda pulsa.” Aos sobreviventes plenos de sua capacidade ético-humanística, haverá um tempo em que “o novo normal” estabelecido a duras penas será sombreado pelos vazios que se foram formando ao longo de 2020 e adjacências, mas que, por panaceia psíquica, foram recobertos por um véu narcotizante.
“O pulso ainda pulsa.” Será preciso encarar as perdas, todas elas, dos amores aos sabores, das finanças às andanças, das querências às experiências. Cumprindo o ritual dos enlutados, será preciso chorar, será preciso imaginar uma narrativa que conte de 2020 e seus buracos, para que a palavra obture o vazio e, assim, o ano da morte deixe de ser um fosso sem fim para se transformar numa ponte que ligará o antes e o depois.
“O pulso ainda pulsa.” Sem esse apalavramento da perda, pavimentando-se uma ligação simbólica entre tempos, ainda que dolorosa, não se retoma o caminho, não se supera a apatia, não se aplaca a melancolia, não se abraça a esperança. Sem a realização da dor do viver, poucas chances tem o sabor de ser.
“O Pulso”, poema de Arnaldo Antunes, cantado pelos Titãs, enfileira doenças, menos para dizer da fragilidade do corpo, das indigências que se fabricam, da iminência da morte, mais para ressaltar a potência do desejo.
O desejo, afeto que nasce da falta e que lhe dá um sentido positivo, é o motor da vida. Assim, que façamos de 2021, um tempo de desejo. Desejo que é a alma da esperança. Esperança que é mesmo a razão do existir. “O pulso ainda pulsa.”
JOSÉ ANTONIO MARTINUZZO é doutor em Comunicação, pós-doutor em Mídia e Cotidiano, professor na Ufes, membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória.