Portugal enfrenta ‘avalanche’ de imigrantes; governo pode recuar de endurecer regra de nacionalidade
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BRASÍLIA - O governo de Portugal pode ter de recuar da proposta de alteração da lei de nacionalidade, que dificulta a obtenção da cidadania portuguesa, indicou o secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, Emídio Sousa. Para o político do PSD, partido do primeiro-ministro Luís Montenegro, a proposta governista terá de ser ajustada, pois corre risco de ser barrada.
Um dia depois de o governo aprovar na Assembleia da República a primeira parte de um “pacote anti-imigração”, o secretário do Ministério de Negócios Estrangeiros relatou que o presidente Marcelo Rebelo de Sousa tende a intervir no endurecimento da lei de nacionalidade. O debate será retomado em setembro.
“O pacote de nacionalidade eu até tenho dúvidas que vá passar”, disse Emídio Sousa. “Muitas vezes a proposta inicial é excessiva e depois a discussão política leva a alguns ajustes. Eu julgo que vai acontecer isso nessa lei.”
Nesta quarta-feira, dia 16, o governo conseguiu aprovar com apoio da ultradireita, o Chega, mudanças na lei do estrangeiro, a primeira parte do “pacote anti-imigração”. As leis tiveram apoio da base do governo, a Aliança Democrática, bloco liderado pelo PSD com o CDS.
Uma lei já promulgada pelo presidente cria um serviço policial para deportações, a Unidade Nacional de Estrangeiros e Fronteiras (Unef), dentro da Polícia de Segurança Pública.
Outras regras aprovadas na Assembleia e ainda nas mãos do presidente dificultam o reagrupamento familiar, acabam com a possibilidade de cidadãos da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), como Brasil e Timor-Leste, entrarem sem visto no país e pedirem residência, e criam para o visto de trabalho o enquadramento de profissional “altamente qualificado”.
Político do PSD, o partido do governo, Emídio Sousa concedeu entrevista exclusiva ao Estadão durante viagem ao Brasil. Ele visitou Rio de Janeiro, São Paulo, Goiânia, Brasília e ainda vai a Salvador e Recife.
Discutiu com o Itamaraty casos de racismo e a situação da comunidade brasileira em Portugal, a segunda maior do mundo e a maior de origem estrangeira no país europeu.
Veja os principais trechos da conversa:
Portugal aprovou um pacote anti-imigração que prejudica brasileiros. Qual a mensagem do governo português para o Brasil?
Chamar pacote anti-imigração coloca uma carga negativa, que não é aquilo que o governo português pretende.
Nós temos muito apreço pela comunidade imigrante e fiquei um bocadinho surpreendido que esta situação fosse interpretada como um pacote anti-imigrante brasileiro. Não é.
Esta regra não é de todo anti-Brasil. Não é de todo anti-imigrante brasileiro.
Portugal hoje tem uma pujança econômica, é um país atrativo. A população está muito envelhecida e claramente nós precisamos de imigração. Hoje eu diria que o país já não sobreviveria sem imigrantes.
A comunidade brasileira eu tenho a certeza que é apreciada e bem acolhida, por razões óbvias, desde logo a língua, ferramenta mais importante para facilitar uma integração. O brasileiro tem uma matriz cultural muito semelhante à portuguesa. O brasileiro e português facilmente se misturam.
Qual foi a razão para o governo propor o pacote da lei de estrangeiros e da nacionalidade?
O que acontece é que Portugal abriu as portas completamente há sete anos aproximadamente e viu-se confrontado com uma avalanche de imigrantes para os quais não temos infraestrutura. Fala-se de 1,5 milhão de imigrantes.
O país não consegue dar condições dignas a todas estas pessoas que foram para lá.
Hoje a crise da habitação é tremenda e o problema que em Portugal já não existia, que é as barracas (casas com telhados de chapa de zinco) começou outra vez a surgir. Também há casos de pessoas sem abrigo (pessoas em situação de rua). Nós queremos que o imigrante que for para Portugal e em especial o brasileiro tenha uma vida digna.
Um país com 10 milhões de habitantes que em meia dúzia de anos recebe 15% a 20%, é muito difícil. E o que nós estamos a fazer é tentar controlar estes fluxos que foi excessivo.
Isso causa problemas. O preço da habitação em Portugal aumentou exponencialmente. Há sobrelotação de alojamentos, há apartamentos que deveriam albergar quatro ou cinco pessoas que chegam a ter 30 pessoas. Portanto, o país precisa de se organizar.
Estas pessoas também podem provocar alguma fricção. Não é o caso dos brasileiros, mas nós temos imigração de outros quadrantes, que tem mais dificuldade de integração.
Nós somos um país de imigrantes, só que isto começa a provocar um choque cultural com os residentes e é isso que nós queremos evitar.
Como ficam os processos de regularização represados?
Nós temos 700.000 processos pendentes da regularização dos nossos serviços de fronteiras. Portanto, houve aqui uma série de erros que foram cometidos no governo do Partido Socialista nós agora temos que corrigir. E o senhor primeiro-ministro já o tem dito várias vezes e eu repeti-lhe as palavras assim: “Nós não queremos fechar as portas à imigração”. A organização que tinha que ser feita rapidamente.
Agora com a nova lei existe a figura dos imigrantes com visto de trabalho “altamente qualificado”. Quais serão as profissões?
Falta definir em uma portaria o que é o altamente qualificado. Muitas vezes as pessoas associam ao professor universitário. Não é isso. Altamente qualificado pode ser um soldador.
E como será a tramitação da lei de nacionalidade em setembro?
Até agora falamos da lei de estrangeiros e fronteiras. A lei da nacionalidade ainda não está aprovada, foi para setembro. São coisas diferentes.
A proposta inicial é para alargar o pedido de nacionalidade a quem viva atualmente há cinco anos em Portugal. Vai passar para 10 anos. E para brasileiros e CPLP serão exigidos sete anos.
Por que o governo decidiu alterar a regra de nacionalidade e prolongar esse prazo?
O pacote de nacionalidade eu até tenho dúvidas que vá passar. Sinceramente, é uma matéria que está em discussão. Vai à Assembleia da República, o senhor presidente da República também já percebi que está muito sensível à questão e julgo que ela ainda vai sofrer ali alguns ajustamentos.
Até agora só era permitida a nacionalidade até o neto de portugueses, agora já vai ser alargada até ao bisneto.
Uma das críticas é que o reagrupamento familiar (juntar pais e filhos) passa a exigir uma permanência de pelo menos dois anos. Que não me parece excessivo, porque o menor pode juntar-se ao pai ou à mãe. Estamos a falar dos filhos maiores. Portanto, dois anos também não me parece excessivo. Acho que é acomodável. Julgo que tem alguma polêmica excessiva.
O senhor entende que a lei de nacionalidade pode ter mais dificuldade de passar, pode não ser aprovada?
Muito provavelmente.
Por que o senhor tem essa percepção? O governo já está avaliando alguma adaptação à proposta original?
Neste momento, é a proposta do governo. Só que nós não temos maioria absoluta no parlamento, portanto tem que ser discutida com os outros partidos. E o presidente da República já manifestou algumas reservas a esta alteração.
Ainda não posso adiantar muito, porque a discussão política vai se fazer agora. Provavelmente até ficará tudo igual, mas isso também não posso adiantar. É uma discussão política que vai acontecer no parlamento e o presidente com poder de veto. Percebi que é uma matéria que o preocupa mesmo.
O senhor vislumbra o que pode ser modificado ou o governo retiraria a proposta?
Pode não retirar, pode consensualizar. Muitas vezes a proposta inicial é excessiva e depois a discussão política leva a alguns ajustes. Eu julgo que vai acontecer isso nessa lei. E o próprio presidente tem um poder de palavra, de chamar os líderes partidários e procurar consensualizar. Penso que essa discussão ainda vai acontecer.
Há indicativos de que ele possa mandar à revisão constitucional a lei de estrangeiros?
Percebi que ele estava com muita prudência, com muita cautela, e que é uma matéria que o preocupa.
Nacionais de países da CPLP, como o Brasil, ainda terão prazo mais curto para obter nacionalidade, mas a lei de estrangeiros acabou com a possibilidade de entrarem como turistas, até sem necessidade de visto no caso do Brasil, e poder pedir para permanecer como residente.
Esse foi o problema, porque abriu portas ao desejável e ao indesejável. Qualquer um, com uma manifestação de interesse, entrava em Portugal e chegava lá pedia a regularização, tivesse trabalho, não tivesse, tivesse dinheiro, tivesse casa... Foi isso que provocou uma entrada caótica de pessoas e que está a provocar estes constrangimentos que o país não tinha condições para acolher dignamente.
Muitas vezes, as pessoas julgam que ao ir para Portugal vão encontrar tudo fácil. Se não tens trabalho, é difícil. Se não tens alojamento, é muito difícil.
Tínhamos que fazer isto sob pena de um dia desses termos ali uma questão social muito grave.
A manifestação de interesse é travada, mas mantemos todas as outras. Até criamos uma figura: a empresa portuguesa que queira contratar trabalhadores fora de Portugal pode fazer ela própria, diretamente, que nós validamos em Portugal.
Isso não vai provocar agora uma discussão grande com Portugal na cúpula da CPLP nesta sexta?
Suponho que sim, mas penso que mesmo para o Brasil, Angola... esta questão é prudente. Tenho a certeza que o Estado brasileiro não quer que o brasileiro vá Portugal viver debaixo da ponte.
Portugal foi cobrado por outros países da União Europeia do espaço Schengen?
A Europa tem gravíssimos problemas com imigração do Oriente Médio, do Magreb, do Norte da África... Há um acordo entre os países para disciplinar esta chegada maciça de pessoas e Portugal está na União Europeia e tem que respeitar. Muita da nossa legislação é produzida em Bruxelas e nós somos obrigados a transcrevê-la para o nosso quadro legal e quando não a transcrevemos, recebemos multas pesadas. Portanto, sim.
A Comissão para Igualdade e Contra Discriminação Racial (CICDR) ficou mais de um ano parada quando foi reformulada e transferida para a Assembleia e agora os dados de queixas de crimes de racismo estão defasados. Os de 2022 mostravam aumento de mais de 800% de denúncias de vítimas brasileiras. A falta de estatísticas atualizadas atrapalha o debate público? A comissão será reformulada?
Eu não sei exatamente qual é o trabalho que essa comissão fará. O mais importante é que a xenofobia e o racismo em Portugal é crime. E a justiça funciona.
Portugal não é toda racista. Por vezes, pode haver alguns choques culturais, não com o brasileiro, a cultura é muito próxima, agora com outro tipo de regiões, eu admito que possa haver algum choque cultural. Não racismo.
Portugal cometeu outro erro muito grave, quando extinguiu o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Deixamos de ter uma entidade especializada para tratar destes processos.
Houve um incidente grave, um cidadão ucraniano morreu em um episódio de violência desse serviço. Isso provocou um tumulto muito grande em Portugal. Não podemos tolerar esse tipo de comportamento e aconteceu. E levou à decisão de extinguir o serviço. Foi pior a emenda do que o soneto. Ficou com a polícia comum.
Nós agora estamos a criar um novo serviço muito semelhante, uma polícia especial, é uma unidade especializada para repor o quadro, receber bem, controlar desde a partida e tratar destes processos com celeridade e respeitando a legalização.
Qual é o risco de nós vermos em Portugal com a nova polícia para imigrantes algo semelhante ao que vimos nos Estados Unidos com o ICE com os imigrantes sendo deportados algemados?
Zero. Garanto, nunca vai acontecer. Para nós, a dignidade humana está acima de tudo. Nunca faríamos uma situação como essa. Agora, se há bandido que é preso, crimes graves e que deve ser condenado a justiça funciona. Essa hipótese de alguém não ser tratado com dignidade em Portugal, não nunca vai acontecer.
Em junho, o governo informou que havia 34 mil imigrantes sendo comunicados que deveriam deixar Portugal. Se não o fizessem por conta própria, seriam deportados. Eram 5 mil brasileiros. A nova polícia vai atuar nesses casos?
Eles foram notificados. Esses que foram identificados estão a abandonar voluntariamente o país. Ou regularizam ou abandonam. Se não abandonam, terão que ser deportados. Mas nunca será como nos Estados Unidos.
Portugal valia fazer voos de deportação para os países de origem?
Sim. Ou em voos comerciais, também pode acontecer. Qual é a metodologia que vamos seguir ainda não sei, mas até para nos fazermos respeitar quem não está legal.
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