Galinhas, licores e cisternas: uma brecha no tempo que sustenta vidas no Cabo
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Quem chega ao Engenho Rosário, no Cabo de Santo Agostinho, talvez não saiba dizer ao certo onde a cidade termina e onde começa esse outro lugar. Sim... É outro lugar. Ali, a apenas poucos minutos da PE-60, entre bairros urbanos, condomínios e um shopping, abre-se uma espécie de dobra no tempo.
Não é exagero — ainda que soe romântico. O que se vê é um caminho de barro cercado por verde, onde quintais cultivam fartura, galinhas ciscam soltas e vizinhos trocam mudas, ovos e licores como quem compartilha um segredo. Um respiro em meio ao concreto. Um lugar onde a palavra “comunidade” não perdeu o sentido.
É como se alguém tivesse deixado a porta de um mundo esquecido entreaberta. Uma porta sem chave, mas com raízes. Talvez não seja a analogia mais técnica, mas me lembra um pouco o armário de Nárnia — só que em vez de faunos e neves eternas, ali dentro pulsa a agricultura nordestina em sua forma mais vigorosa, reinventada.
Desde 2024, quando o projeto Quintais Produtivos chegou à região, uma revolução silenciosa brota entre as 245 famílias do engenho. Em pouco mais de um ano, pelo menos 20 lares saíram da vulnerabilidade e passaram a viver com mais autonomia, menos dependência de grandes mercados e mais orgulho da terra onde pisam.
Fogão aceso, vida acesa

Nina do Rosário é o nome de voz firme por trás da Associação do Engenho. Aos 53 anos, ela se apresenta como quem sempre pertenceu àquele chão: “Desde que me entendo por gente, vivo nesse engenho”. Casada, mãe de filhos crescidos, viu sua história mudar quando recebeu um fogão agroecológico do projeto.
"Hoje eu tava agradecendo a Deus por ele", conta, em entrevista à coluna. "É à lenha, tem três bocas, tem forno. Antes eu vivia me queimando tentando fazer fogo com tijolo, gastava muito gás. Agora, cozinho mais no fogão à lenha. Faço licor de jenipapo, doce de jaca, lambedor... E vendo. Vendo bem."
O fogão é mais que um utensílio. É o centro da casa e da produção. E também da autoestima. “Teve cliente que veio aqui me ver fazendo o licor e se emocionou com o fogão aceso.” Há uma poesia que não se pretende poesia nessa frase. Mas que, como o cheiro de jaca caramelizada, fica.
A família de Nina, como muitas outras do engenho, é parte de um ecossistema de trocas. Uma vizinha ganhou galinheiro, a outra uma cisterna com sistema de irrigação.
Nina hoje tem também uma estufa. E explica com entusiasmo: “Nosso produto vira moeda. Eu não tenho cisterna, mas posso trocar minha produção com quem tem. Isso gera empatia, amizade, circulação de vida”.
Entre a cidade e o campo

O Engenho Rosário é campo, mas também é cidade. Está ao lado de Garapu, a poucos minutos de centros comerciais e do vai e vem dos carros na rodovia. Mas preserva água corrente limpa, mata nativa e tradições ancestrais. “É área rural urbana”, define Nina, e talvez essa seja a melhor expressão. Uma zona de transição onde se cultiva esperança.
Quem mora ali planta o que come. E sabe de onde vem cada broto. “As pessoas saem da cidade para comprar aqui. Sabem que é orgânico. Que a água não é contaminada”, conta a presidente.
O projeto, executado pela Cáritas Brasileira Regional Nordeste 2 com apoio da Fundação Banco do Brasil, tem como missão fortalecer a agricultura familiar. Ensina não apenas a plantar, mas a gerir, preservar, multiplicar. “Não é só dar o peixe”, diz Nina. “É ensinar a pescar, dar a vara, mostrar como cuidar do peixe e como vender o peixe”.
Com a mesma clareza com que costura ideias e frases, ela traça uma visão de mundo. “A agricultura é vida, é sonho, é saberes. Muita gente vê o agricultor como um coitado, mas é o contrário. A agricultura é o que sustenta tudo.”
Cisternas que brotam maracujás

Outra história que se entrelaça nessa mudança é a de Misael Francisco dos Santos, agricultor de fala simples e sorriso largo. Aos 49 anos, ele resume: “Agora tá uma bênção”.
Misael mora com a esposa e dois filhos e cultiva maracujás. “Sou muito bem casado”, diz, orgulhoso, ao responder à pergunta que sempre faço em entrevistas que considero especiais.
Durante anos, Misael carregou água em tambores na carroceria do carro, três viagens por dia, para irrigar seus pés de fruta. “Ficavam mangando de mim. Eu chegava arregaçado em casa, braços doendo. Agora, com a cisterna da Cáritas e 60 varas de cano, puxo direto a água para a plantação. É outra vida.”
Antes, ele mal conseguia colher. Hoje, são mais de 800 pés em produção e cerca de 50 caixas por mês. O filho ajuda na colheita e, quando sobra tempo, eles sonham juntos com o futuro: "Agora quero criar galinhas poedeiras, fazer um galpão, vender ovo. Já tô correndo atrás."
O que era quase inviável — a sobrevivência no campo — virou projeto de futuro.
O que é uma casa viva?

A resposta talvez esteja nos pequenos detalhes que Nina e Misael compartilham. Em um vídeo caseiro mostrando os maracujás, o fogão... Em uma troca de produtos entre vizinhos. Em um galpão sendo erguido aos poucos para abrigar novas galinhas. Em caixas de maracujá vendidas no comércio local.
A casa, antes dependente, agora produz. E não só alimentos, mas autoestima. Produz pertencimento, propósito, independência.
O que floresce quando o cuidado chega

"Esse projeto não só ensina a pescar. Ele nos dá ânimo. Ele trouxe vida", resume Nina, entre pausas sentidas. E repete: vida. Vida que estava quase se apagando em muitos moradores do engenho. A palavra brota como uma semente bem cuidada, como se tivesse sido regada nos olhos antes de ser dita.
O que se viu ali, com a chegada dos Quintais Produtivos, foi mais do que a entrega de estruturas ou equipamentos. Foi uma injeção de confiança. “Muita gente estava desestimulada. Agora acredita de novo.”
O projeto se multiplica pelo boca a boca, nas feiras, nas conversas. Agricultores de outros engenhos se encantam quando ouvem os relatos. “Ficam com os olhos brilhando. Dizem que também querem um fogão para fazer seus bolos, seus pães. E eu conto tudo. Porque a gente quer que esse projeto chegue em mais lugar”, diz Nina, como quem espalha sementes.
A terra responde

No Rosário, a terra respondeu. Com mudas que vingaram, ovos frescos, fornos cheios de licor, pés de maracujá irrigados. Mas também com mais vizinhos que se ajudam, que trocam conhecimento, que olham o futuro com menos medo.
E é disso que se trata. Mais que comida na mesa, o que brota ali é algo mais profundo. Um tipo de resistência suave, cotidiana, mas poderosa. Um jeito de viver onde o chão é mais do que suporte: é base.
Pernambuco que encanta (e ensina)
O Engenho Rosário é mais que um pedaço bonito de terra. É um exemplo de como políticas públicas e iniciativas sociais bem pensadas conseguem mudar realidades sem precisar arrancar raízes. Ao contrário: fortalecendo-as.
Num Brasil onde a violência e a desigualdade ainda crescem, é no interior de um engenho — sim, aquele do lado da rodovia, aquele entre shoppings e bairros densos — que se aprende a força da coletividade, do cuidado, da terra bem tratada.
Numa época em que tanto se discute o futuro do planeta, talvez seja hora de ouvir mais gente como Nina e Misael. Gente que planta esperança e colhe dignidade.
Carnaubeira da Penha

Carnaubeira da Penha, no Sertão de Itaparica, conquistou um feito raro no cenário educacional: alfabetizou 100% das crianças avaliadas no 2º ano do Ensino Fundamental em 2024. Os dados são do Ministério da Educação (MEC) e foram divulgados na última sexta-feira (11).
No Sertão de Itaparica
Esse município saltou de 84,3% em 2023 para o índice máximo no ano passado, superando em quase 20 pontos percentuais a meta estipulada pelo Ministério da Educação, que era de 80%. A meta estipulada de alfabetização para 2025 também é de 80%. Vamos torcer para que alcance resultado semelhante ao do ano passado. Maravilindo!
Exemplo em Pernambuco
O que não falta é anúncio de festa no instagram da Prefeitura de Carnaubeira da Penha, mas as crianças estão se desenvolvendo. O dado mostra o impacto positivo da gestão que se comprometeu com a alfabetização na idade certa. A cidade é um exemplo para o país no Compromisso Nacional Criança Alfabetizada.
Machados e Cumaru
Machados e Cumaru também se destacaram entre os melhores resultados de alfabetização de Pernambuco em 2024, ficando em segundo e terceiro lugar no ranking de Pernambuco. Machados alfabetizou 96,75% das crianças, superando com folga a meta de 80% e mantendo a boa performance de 2023 (86,9%).
Agreste Meridional
Já Cumaru saltou de 76,4% para 95,06%, ultrapassando em quase 18 pontos a meta estabelecida. As duas cidades se localizam no Agreste Meridional.
Pernambuco no palco nacional
Única escola do estado no Festival de Joinville, o Nosso Espaço de Danças, do Janga, representa PE com espetáculo de Xaxado. Com nota 9.1 — a maior da categoria Danças Populares Brasileiras —, o grupo leva a força do sertão à maior vitrine da dança no Brasil. É belezura!
Em Olinda, a lama vira berço de futuro com 8 mil mudas no mangue
Depois das manchetes marcadas por crateras e ruas esburacadas, Olinda agora planta vida. No dia 22 de julho, a cidade promove o plantio comunitário de mil mudas no Mangue da Santa, em Rio Doce — parte de uma ação maior que prevê 8 mil espécies nativas para restaurar esse ecossistema vital. A iniciativa une prefeitura, governo do estado e UFRPE em torno do projeto Plantar Juntos – Manguezais. É lama com propósito: raízes que seguram o solo, acolhem a fauna e devolvem esperança.
O que une essas cinco cidades?
Talvez seja a coragem de cultivar em tempos de abandono. A teimosia de seguir adiante, mesmo quando falta estrada, verba ou aplauso. Em comum, Cabo, Carnaubeira da Penha, Machados, Cumaru e Olinda carregam sementes — de vida, de leitura, de comida feita em casa, de floresta que resiste.
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