“A vida é traição”: Raimundo Carrero entrega sua carta ao mundo
Em novela breve e profunda, Carrero transforma culpa, luto e fé em literatura — e oferece ao leitor um acerto de contas com a alma
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Aos 77 anos, Raimundo Carrero volta à cena literária com um livro curto, íntimo e lancinante: A vida é traição. Em apenas 80 páginas — que lhe tomaram nove meses para nascer —, Carrero oferece ao leitor o que ele próprio chama de “carta ao mundo”.
E talvez não haja expressão mais exata para traduzir o que essa missiva é: uma escrita de urgência espiritual, forjada na memória, na culpa, na perda e na fé.
O lançamento será nesta quinta-feira (3), às 17h, na Livraria Jaqueira do Paço Alfândega, Zona Norte do Recife.
“Esta novela é muito, muito importante para mim. É minha carta ao mundo, como costumo dizer”, diz o escritor, já anunciando a promessa da obra, marcada pela delicadeza e pela vertigem.
Uma ficção forjada na dor real
A vida é traição’ é uma ficção — mas, como toda grande obra, brota das vísceras. Do lugar íntimo em que a culpa se confunde com a própria traição da existência.
Uma dor que, para ele, não se cura com psiquiatra, nem com psicologia, nem com o tempo.
"A culpa infudada não é consciente, nem inconsciente. A gente leva para a eternidade".
Assim parece ser com o protagonista do livro, Solano, um homem partido pela culpa: desde criança, carrega o fardo de ter desejado — ainda que em pensamento — a morte da mãe, que padecia de uma doença no leito.
Quando o desejo vira realidade, a dor se instala para Solano como ferida eterna. A frase que Carrero fala em seguida ao Tribuna Online PE, já mareja os olhos de quem escuta. Porque cria uma sintonia entre ele e o protagonista da obra.
“Minha mãe morreu quando eu tinha 10 anos, de leucemia. Mas uma empregada da casa disse que fui eu que a matei. Eu ouvi aquilo, criança, no Sertão. Isso me marcou para sempre. A partir daquele momento, a vida virou traição". Raimundo Carrero, Escritor
Solano, o personagem, carrega essa mesma culpa infantil transformada em abismo. Acusado de assassinato, espancado, ele é lançado às sombras da própria memória.
O personagem do livro se encontra novamente, em certa medida, com o Raimundo Carrero da vida real. No colégio interno Salesiano da Boa Vista, para onde foi ainda menino, a ausência da mãe (já falecida) ganhou paredes.
Ali, a solidão se tornava disciplina, e a culpa, silêncio — alimentada dia após dia, como se também tivesse sido matriculada.
Mas é agora, entre o escuro e o claro, que Carrero encontra sua luz. E deixa para nós mais um livro belíssimo. Não espere, leitor, pelo previsível.
A carta mais íntima de uma vida

Ao ser questionado se esta seria sua obra mais íntima, o autor não hesita:
“É o meu romance mais íntimo porque vem da alma, daquele conflito espiritual que a gente não resolve com cirurgia, nem com remédio. A culpa, mesmo infundada, a gente carrega para a eternidade. Raimundo Carrero, Escritor
Casado com outra mulher atualmente, Mariela, Carrero fala também da dor da perda de sua ex-mulher, Célia, vítima de Alzheimer, aos 69 anos. Seu filho, Diego, viu refletir a culpa infundada no espelho diário por não ter feito mais. Na visão dele.
“Papai, estou me sentindo culpado pela morte da minha mãe”, disse Diego.
A fala foi mencionada por Carrero durante a entrevista, quando ele refletiu sobre aquele sentimento que surge mesmo sem que a pessoa tenha cometido qualquer erro real. Contudo, pesa como se fosse.
“Expliquei que a doença não tem cura. Mas percebi o quanto a culpa, mesmo injusta, pode marcar para sempre uma pessoa.”
Zelar pela humanidade — o papel da literatura
Carrero, que já venceu o Jabuti e o Prêmio São Paulo de Literatura, se diz convencido de que escrever é um ato espiritual. Uma forma de cuidar da humanidade — não no sentido utilitário da palavra, mas como gesto de compaixão, de lucidez.
“A literatura tem essa missão de zelar pela humanidade. Quem cuida do ser humano é a literatura, a arte. Ali dentro está o processo, o julgamento do espírito, o julgamento da alma. Não é só cantar e compor, mas é cuidar do outro, em qualquer nível. Quando um menino do Sertão escreve um poema, é mais espiritual do que material.” Raimundo Carrero, Escritor
A sensação de trair Deus

Ao longo da entrevista ao Tribuna Online PE, Carrero retorna várias vezes à questão espiritual. Fala de Jesus, do pecado original e do perdão. E menciona o Papa Francisco, a quem chama de santo.
“O Papa Francisco colocou em prática o Evangelho. Coisa rara. Nós, ao contrário, traímos Deus todos os dias. A vida material nos desvia da missão.”
Entre seus guias espirituais e literários, cita Ariano Suassuna, de quem foi discípulo. E, no livro, costura sua filosofia com frases de Gonzaguinha, Manuel Bandeira e do próprio Ariano:
“A vida é traição, uma traição contínua”, escreve, Suassuna.
"Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade. Que a vida é traição", diz Bandeira.
“É a vida, é bonita e é bonita”, canta Gonzaguinha.
Suporta-se o mundo com palavras
Em sua trajetória como escritor e jornalista — marcada por passagens no Diario de Pernambuco, na Fundarpe, na Academia Pernambucana de Letras — Carrero sempre defendeu que a literatura serve “para suportar o mundo”.
E agora, ao ser perguntado como a escrita o ajudou a atravessar tantas perdas, ele devolve com generosidade:
“Acho que o livro expurga essas dores e ajuda a eliminá-las, mas vai continuar doendo muito tempo enquanto eu estiver vivo” Raimundo Carrero,
Indagado, ainda, sobre quem o inspira, ele falou, com a gentileza de quem agradece aqueles que a outros mestres, como ele mesmo é para tantos estudantes, leitores e pernambucanos:
"Em Ariano Suassuna. Ele morreu, a obra ficou e eu me inspiro na obra de Ariano. Onde eu errei, errei sozinho, onde acertei, acertei com Ariano", frisa.
Perdão como resposta final
Ao fim da entrevista sobre o livro que precisa ser lido e sentido, quando perguntado pela reportagem se a obra oferece alguma esperança ou se permanece com o olhar cortante sobre a vida, Carrero dá uma resposta enigmática e canta. Sim, ele canta:
“Ai, ai, ai, está chegando a hora... o dia já vem raiando, meu bem, eu tenho que ir embora.”
A canção "Está Chegando a Hora" tem origem mexicana e se chama originalmente “Cielito Lindo”, mas ganhou essa versão brasileira bastante popular nas décadas de 1940 e 1950.
Ao continuar sem dar mais spoiller, Carrero pronuncia o nome de quem o entrevista - Aline - como se a conhecesse, um presente para qualquer jornalista:
“Tenho convicção que minha mãe está no paraíso. E quando penso na dor, lembro de Cristo pedindo que perdoássemos até quem o torturou. Eu não carrego amargura, Aline. Carrego perdão.”
A vida interior e os mestres de fé
No livro, como na vida, a angústia de Raimundo Carrero não se limita à culpa, mas alcança uma dimensão teológica: o pecado original. Algo que vai ser sentido em A vida é traição.
Para ele, não se trata de uma metáfora ou invenção doutrinária, mas de uma marca real, espiritual, que os cristãos carregam desde o nascimento.
“A culpa espiritual é aquela que vem do pecado original, aquele pecado que muita gente acha que é simbólico, o de Adão e Eva. Mas ele é concreto" Raimundo Carrero, Escritor
Carrero também se aproxima aqui de Dostoiévski, autor que também acreditava que todo ser humano nasce com uma herança de queda.
“Nós traímos Deus todos os dias porque temos dificuldade de colocar em prática o evangelho”, afirma o autor, sem ressentimento, mas com o peso de quem carrega uma cruz invisível.
Nessa obra atual, essa culpa ancestral se transforma em linguagem — e talvez - talvez - em uma forma de salvação.
Lançamento do livro "A vida é traição"
🗓 Data: 3 de julho (quinta-feira)
📍 Local: Livraria Jaqueira do Paço Alfândega
🕔 Horário: 17h
📚 Editora: Record
💲 Preço: R$ 54,90
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