Homenagens e cultura nordestina marcam sambas do Rio deste ano
Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz, Bahia e Pernambuco são alguns destaques
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Exaltação à cultura do Nordeste e do Norte do País. E homenagens em geral, incluindo saudação a dois ícones sambistas, a personalidades históricas e até da mitologia grega. Esses são os temas que marcam os sambas de enredo do Grupo Especial do Carnaval do Rio de 2023.
A crítica social tão presente nas folias anteriores só se faz presente de forma mais vívida com a Beija-Flor de Nilópolis. E de maneira mais tímida com a Acadêmicos do Salgueiro. O que se sente ao ouvir o álbum é um clima mais de celebração desta vez.
Apesar das boas ideias, há no máximo uma ou outra canção com potencial de se eternizar. No geral, a safra do próximo Carnaval é abaixo da de anos anteriores, embora não haja uma canção que possa ser considerada ruim.
- Estação Primeira de Mangueira tem o melhor samba do ano
- Paraíso do Tuiuti e Império Serrano estão acima da média
- Imperatriz Leopoldinense, Acadêmicos do Grande Rio, Portela e Mocidade Independente de Padre Miguel ficam na média
- Unidos do Viradouro, Salgueiro, Unidos da Tijuca, Unidos de Vila Isabel e Beija-Flor completam a lista das obras com qualidade, mas sem o brilho dos carnavais passados.
Mangueira
A Estação Primeira tem o melhor samba do ano. Com o enredo “As Áfricas que a Bahia canta”, a escola aborda a musicalidade baiana por meio da religião afro, com uma deliciosa abordagem do empoderamento feminino e da cultura do Nordeste.
Tratando da musicalidade e da religiosidade baiana, o hino se inicia com a interpretação da agora ministra da Cultura, Margareth Menezes, declarando-se: “Sou eu, Mangueira, a flecha da evolução”.
Irresistível, a melodia parece convidar, estrofe por estrofe, o ouvinte a acompanhar as letras até o inspirado refrão, em alusão à orixá Iansã.
“Eparrey, Oyá. Eparrey, mainha. Quando o verde encontra o rosa, toda preta é rainha.”
Em um dos trechos, a letra define que “resistir é lei, arte é rebeldia”. A expressão, curiosamente, foi cunhada sobre o palco da histórica quadra da escola, aos pés do Morro da Mangueira, na capital carioca.
Paraíso do Tuiuti
O samba da escola vice-campeã de 2018 não esconde a que veio para o Carnaval 2023 e já começa frenético nos primeiros versos. “Cadê o boi? O mogangueiro! O mandingueiro de oyá. Meu Tuiuti não tem medo de careta. Traz o boi da cara preta do estado do Pará.”
Na gravação oficial para o álbum (ou como se pode chamar a compilação presente nas plataformas de streaming), o clima começa lá em cima com o refrão principal logo no início. De arrepiar.
O restante da canção segura bem a onda, em uma boa interpretação de Wander Pires, com seu vocal límpido e muitos melismas.
Versando sobre a Ilha de Marajó, no Pará, a Tuiuti empolga. A típica letra com referência geográfica soa agradável, bem encaixada na melodia, e se apresenta simples para o canto, apesar dos termos pouco usuais, como a bem sacada rima sobre a fauna regional paraense: “Okê caboclo onde vai a piracema? Rio acima segue o voo de uma juriti pepena.”
A considerar o samba, a Tuiuti tem motivos para não temer o risco de rebaixamento, que vem rondando a escola nos últimos anos.
Império Serrano
“Deixa, o fim da tristeza ainda há de chegar. O show do artista vai continuar. Morando nos sambas que você fez pra mim.” A homenagem ao sambista Arlindo Cruz faz referência
de maneira sóbria e sensível ao estado de saúde do mestre.
O músico sofreu um AVC em 2017 e desde então não se recuperou completamente. Impossível ignorar o estado enfermo do homenageado, o que a letra do sambão da Império Serrano faz com empatia e delicadeza.
A letra evoca a religião afro para demonstrar confiança na volta por cima: “Dagô, Dagô é a lua de aruanda. A espada é de guerra e Ogum vence demanda.”
Melodia forte e versos bem construídos, numa boa performance do intérprete Ito Melodia, um dos melhores da folia atualmente.
Imperatriz Leopoldinense
A história do cangaceiro Lampião e seu bando são uma fonte inesgotável de inspiração. Aliás, o enredo escrito pelo carnavalesco Leandro Vieira é tão vibrante que deixa o samba de sua escola em segundo plano (vale pesquisar na internet). Literatura de cordel com rima e métrica em grande forma.
Mas, como sinopse não levanta público e nem faz desfile sozinha, vamos ao que interessa: o samba da Imperatriz convence. E muito! Refrão fácil e letra emocionante sobre o rei do cangaço, sua vida e sobretudo os folclóricos delírios relacionados à sua morte e seu pós-morte.
O senão aqui fica por conta da repetitiva melodia de duas estrofes longas e muito parecidas. Estrutura cansativa, creio eu, e que talvez interfira para o folião do chão que vai desfilar e o restante do público.
Vídeos dos ensaios de rua da escola, porém, mostram uma empolgação surpreendente, com instrumentos do forró presentes à bateria e muita animação. Pode não ser um samba tecnicamente nota 10, mas promete.
Acadêmicos do Grande Rio
Depois de entrar para a história do Carnaval com hinos clássicos por dois anos seguidos, a atual campeã da folia carioca apresenta um samba animado em homenagem ao cantor
Zeca Pagodinho.
Vibrante, cheio de elementos que devem levantar o folião em toda a Sapucaí, e com a prometida homenagem à escola do coração do músico, portelense. Mas é inevitável aquele gostinho de quero mais de quem acompanhou a Grande Rio em 2020 e 2022.
Depois do espetáculo absoluto com os indefectíveis hino e desfile sobre Exu no último ano, a escola apresenta uma obra até boa, mas fadada a jamais virar um clássico.
A parte mais inspirada da canção, aliás, é a que aborda o hábito do artista em consumir sua bebida favorita: “Zeca, levante o copo para o povo brasileiro.” Já o refrão cola na mente ao mesmo tempo em que irrita, com jeito de jingle publicitário, repetindo sobre a “bela quitanda, quitandinha de erê”.
Portela
A maior campeã do Carnaval carioca faz 100 anos. E resolveu levar seu primeiro centenário como tema para a Sapucaí. Como dar espaço a tanta história sem deixar
algo de lado?
Com um bom samba, a escola narra sua trajetória, seus baluartes, suas glórias. A melodia empolga, mas sinto falta de mais conexão na letra. Há algo que não dá liga, não funciona como um trocadilho tão inspirado.
Lembro-me de outros carnavais de autoconsagração com hinos mais bem feitos. A própria Portela, em 2017, tinha um samba sobre si mais empolgado, em que indagava, em alusão aos próprios desfiles: “Quem nunca sentiu o corpo arrepiar ao ver esse rio passar?”.
Desta vez, afirma, de forma vaga, que “ser Portela é tanto mais que nem cabe explicação”. Bonito? Pode ser. Bom samba? Sim. Mas me arrisco a cravar que não será uma canção lembrada no futuro.
Mocidade Independente
Mais uma vez a escola de Padre Miguel se inspira em Pernambuco para seu Carnaval. Desta vez, o enredo vem da cidade de Caruaru, mais exatamente do Alto do Moura.
O artesanato em barro produzido na região, tão difundido no Nordeste, é o tema da bela canção da Mocidade. Diria até que a música é excelente, de letra rebuscada e progressão melódica com belíssimas características de samba-canção em algumas passagens.
O problema é que o negócio na avenida é samba-enredo. Tem de levantar todo mundo, tem de estar na boca do povo. E o hino da Verde e Branco da Zona Oeste é difícil, com passagens, diria eu, um tanto pretensiosas para o estilo, com termos pouco populares.
Se essa barreira for superada, a canção independente pode sustentar um grande desfile. Caso não dê certo, a escola deve perder décimos no quesito samba
de enredo.
Unidos do Viradouro
Autora do mais antigo livro escrito por uma mulher negra no Brasil, Rosa Maria Egipcíaca inspira os belos versos da escola de Niterói.
O hino tem a aura mais emocionada e introspectiva da safra de 2023, com um clima que destoa dos demais. A canção tem sido escolhida a melhor pelo público em enquetes pela internet, no que eu, pessoalmente, discordo completamente.
Existe um problema que pode ser da composição ou ir além, e que é revelado pela interpretação. Zé Paulo Sierra, cantor, não parece preparado para assumir o microfone no tom escolhido, diferentemente de suas excelentes performances em folias anteriores.
Sua entonação nas notas mais altas chegam a irritar o ouvido de quem ouve a gravação oficial. Mesmo com todas as condições que o estúdio permite. Pessoalmente, a estética dramática de uma canção tão difícil de entoar não me agradou.
Acadêmicos do Salgueiro
O pomposo enredo “Delírios de um Paraíso Vermelho” do carnavalesco Edson Pereira, abordando o pecado e a liberdade, deixou cheio de expectativas o coração do salgueirense.
O resultado foi um samba simples, alegre, animado e otimista, mas sem a complexidade esperada em um assunto tão vasto. Arrisco-me a dizer que o refrão “vermelha paixão salgueirense” vai pegar e levantar componentes e público, mas que a escola perderá décimos por causa dele.
Há partes pobres na letra, como a tentativa frustrada de rimar “paraíso” com “Salgueiro”, mas existem bons momentos, além do refrão.
Como quando o cantor Emerson Dias faz bem sem papel, com sua voz cativante e bem humorada, ao anunciar: “A minha Academia anuncia. Da escuridão, raiou o dia.”
Unidos da Tijuca
Outra escola que versa sobre a Bahia em sua canção para o Carnaval 2023, mas sem a mesma qualidade que a Mangueira.
Assim como em 2022, a Tijuca apresenta uma canção docinha. A sentença final do samba declama: "Oh, paí, ó! É carnaval, onde a fantasia é eterna. Com a Tijuca, a paz vence a guerra/ E viver será só festejar."
Vejo o samba da agremiação apenas na média. Vai depender muito da comunidade no chão para levantar a Sapucaí e fazer a diferença.
Unidos de Vila Isabel
O enredo “Nesta festa levo fé”, sobre comemorações em geral, rendeu um samba alto astral e contagiante. Com citação a figuras da mitologia
grega e de outras matrizes culturais.
Prevejo a Vila conseguindo, em 2023, repetir a façanha de 2022, quando cantou sobre Martinho da Vila e conseguiu levantar o público. Vale ressaltar que esta é uma cena
que eu, tendo começado em 2015 a acompanhar in loco os desfiles na Sapucaí, só presenciei mesmo na última folia.
Mas, pessoalmente, achei a melodia um pouco repetitiva. A canção não tem a profundidade esperada de um samba-enredo contemporâneo. No passado, esse tipo de hino dava certo. Será que ainda dá?
Beija-Flor de Nilópolis
Um samba perfeito para qualquer desfile de 2019 para trás. É assim que soa o datado hino da Beija-Flor, que resgata o "Grito dos Excluídos no Bicentenário da
Independência" e acaba esbarrando em um conceito bem parecido com o de fórmulas já utilizadas à exaustão.
Impossível não lembrar, por exemplo, do clássico "Canção para Ninar Gente Grande", da Mangueira, de 2019, com mensagem semelhante.
Como samba de enredo, a Beija-Flor tem uma ferramenta poderosa nas mãos. A canção é completa. Letra empolgante e melodia contagiante, tudo de fácil assimilação.
A pergunta é se os jurados não vão reconhecer tanto clichê em uma obra só e descontar pontos da escola.
Também digna de nota é a voz da cantora Ludmilla acompanhando o icônico Neguinho da Beija-Flor. Ela está lá, mas, a meu ver, nenhuma diferença faz.
*Rafael Guzzo é editor de Economia e Política da Rede Tribuna e folião apaixonado pela Mocidade Independente de Padre Miguel
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