Jéssica Zarina: a pernambucana que faz espelho de um povo na costura
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Jéssica Maria da Silva Santos, 31 anos, carrega nas vestes a memória das matriarcas e nos olhos o brilho de quem transforma ausência em presença. No Recife, seu nome virou sinônimo de moda afro autoral, mas a história por trás do pseudônimo Jéssica Zarina é também a de uma mulher negra, comunicadora, bailarina afro e estilista que tece narrativas de pertencimento a partir das tramas do tecido e da vida.
Aos 10 anos de estrada com a marca Zarina Moda Afro, celebrados na última sexta-feira (25 de julho), Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, Jéssica olha para o caminho percorrido com gratidão e firmeza.
Jéssica nasceu em Olinda, e foi na comunidade Xambá que sua arte também nasceu, entre rezas, tambores e linhas. Cresceu entre as ladeiras do Morro da Conceição, no Recife, e as vielas de Arthur Lundgren II, em Paulista — territórios também que moldaram sua força e sua estética. “Sou das águas de mamãe Oxum, aquela que se cobre de ouro”, diz. E é esse ouro ancestral, tecido com fé e memória, que hoje reluz em passarelas do Brasil e do mundo.
Costura que ergue: da periferia ao mundo

Filha de Tereza Cristina e Rinaldo, Jéssica encontrou nos pais os primeiros incentivadores. Foram eles que, com o pouco que tinham, ajudaram financeiramente o sonho a tomar forma. Mas foi da urgência de se ver representada que nasceu a Zarina: uma marca que veste corpos pretos com dignidade, beleza e afirmação. “As lojas de departamento não estavam atentas aos nossos corpos”, lembra.
Mais que uma marca, Zarina é projeto de vida. Uma forma de transformar desigualdade em estética, invisibilidade em arte. Em suas peças, tecidos africanos como as capulanas são ponto de partida para contar histórias que atravessam o Atlântico e reconectam com as origens.
Só para dar um exemplo, Capulana é um tecido tradicional africano, especialmente popular em Moçambique, mas também presente em outros países da África Austral, como Malawi, Tanzânia e Zimbábue.
Trata-se de um pano de algodão estampado, geralmente em cores vibrantes e com padrões geométricos ou simbólicos que expressam cultura, espiritualidade, status social ou identidade étnica. A capulana pode carregar significados simbólicos — por exemplo, algumas estampas estão ligadas à fertilidade, proteção ou prosperidade.
O impacto é tamanho que suas criações já chegaram a outros estados e países, formando uma rede que ultrapassa fronteiras. “Tenho clientes dentro e fora do Brasil”, celebra.
Encontro com o continente-mãe
A virada na carreira veio em novembro de 2022, quando Jéssica foi convidada a integrar uma caravana de 10 artistas pernambucanos em viagem à África do Sul e Moçambique.
Ela se refere à viagem na qual teve a oportunidade de conhecer o bairro da Mafalala, em Maputo, Moçambique — um território marcado pelo multiculturalismo, onde diferentes etnias, religiões e tradições convivem em harmonia.
Ali, mergulhou nas raízes do "Tufo da Mafalala", grupo formado por mulheres que, por meio da dança, das vestes, das pinturas e da música, expressam a força do feminino africano, a beleza ancestral e o orgulho de ser mulher preta. Nesse quilombo vivo, todas são rainhas, mas o reinado tem à frente Mama Saquia — sorridente, potente e visionária, ela guia o grupo com resistência e arte. Como ela mesma afirma: “África sempre avança. Chegar no continente-mãe foi surreal. Conhecer as rainhas do Mafalala, em Moçambique, me inspirou ainda mais”, relembra.
Transformando saberes em futuro

Essas vivências impulsionaram o projeto "Moda Preta Autoral em Conexão Ancestral", que já formou dezenas de jovens da periferia com oficinas, desfiles e vivências no Recife, Salvador, Fortaleza e São Paulo. Em 2023, o projeto ocupou a Caixa Cultural dessas três capitais. É o saber ancestral que agora se transmuta em futuro.
Jéssica também foi reconhecida como Memória Viva da Cultura Popular e Tradicional de Olinda e chegou à final do Prêmio Semente Itaú Mulher Empreendedora + Diversa.
"Um dos meus maiores prazeres é contar histórias por meio do tecido, da cor, do gesto e da presença. O meu trabalho costura narrativas de pertencimento, memória e futuro para mulheres negras, LGBTQIA+ e todes que se parecem comigo, com aquilo que acredito", afirma.
Mais reconhecimento

Recentemente, Jéssica participou da mesa "Ancestralidade, Moda, Representatividade e Identidade" no Centro de Design do Ceará, dentro do projeto KUYA. Ali, vestiu um look pensado com afeto e confeccionado por fazedores da moda preta ancestral de Pernambuco.
A experiência, segundo ela, foi "pura potência, MONEGRIN!". A presença dela no evento é símbolo da potência de um segmento que ainda enfrenta resistências, mas segue abrindo caminhos com afeto e identidade.
Uma nova geração que também borda o mundo

O mais recente fruto dessa costura coletiva é a coleção "Raízes do Futuro", feita por sete criadores da periferia recifense. Jardel Felipe Francisco, Emerson Rodrigues, Vânia Lins, Leyde Fernandes, Maria Julieta, Mayara Correia e Jhon Nascimento foram selecionados por edital da Penab para viver três meses de imersão no ateliê.
Pela primeira vez, a Zarina abre sua criação para uma costura coletiva. “Cada um trouxe um olhar, uma história. É mais que moda: é comunidade”, afirma Jéssica. As peças são atemporais, criadas com técnicas ancestrais como barafunda e crochê. “Fazemos questão de manter esse legado vivo”.
Mais do que um desfile, a coleção é um manifesto coletivo. A Zarina se tornou também espaço de formação e experimentação para que jovens da periferia possam sonhar, empreender e ocupar novos espaços no mercado da moda.
Cada tecido, uma narrativa

Vestir uma peça da Zarina é também vestir uma posição. É carregar consigo memória, identidade e propósito. Para Jéssica, moda é linguagem e ferramenta de emancipação. “Mais do que vestir corpos, a Zarina veste narrativas, reconecta raízes e afirma presenças”, diz.
Seu ateliê hoje funciona na Av. Manoel Borba, 339, Boa Vista, Recife, e segue com vendas pelo Instagram @zarinamodaafro. Ali, cada linha costurada é uma forma de resistir. Cada modelo, uma maneira de existir. Em tempos em que tantas histórias são silenciadas, Jéssica Zarina segue bordando futuros. Com a sabedoria de Oxum e a força de uma geração que não aceita mais passar em branco.
Jéssica dribla estatísticas
Segundo os últimos dados da PNADc-IBGE, analisados pelo Sebrae-PE, Jéssica é um exemplo de quem conseguiu furar a bolha do empreendedorismo negro feminino em Pernambuco.
Entre 2012 e 2023, a participação de mulheres negras como donas de negócio no estado se manteve praticamente estável, oscilando em torno de 30% ao longo da década. No último trimestre de 2023, elas representavam 30,6% dos empreendedores negros — um índice ligeiramente abaixo do pico de 33,6% registrado em 2019.
A beleza que precisa se desafiar
Apesar de pequenas variações ano a ano, não houve crescimento consistente ou significativo da presença feminina nesse setor ao longo do período. A maioria dos negócios liderados por pessoas negras continua sob comando masculino — 69,4% em 2023.
Esse dado escancara um desafio persistente para o fortalecimento do empreendedorismo entre mulheres negras, que enfrentam barreiras adicionais de gênero e raça para abrir e manter seus negócios. Ainda assim, mulheres como Jéssica Zarina provam que é possível romper as estatísticas: com seu projeto de moda autoral e ancestral, ela inspira outras mulheres negras a empreenderem com identidade, memória e potência.
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