A saga de José Neto: De Olinda à Terra Média
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Muita gente se esquece do encantamento de quando era criança. O geek não. José Neto, 36 anos, é uma dessas pessoas que continuam escutando os chamados do mundo imaginário. Em vez de fechar os olhos para ele, aprendeu a manter as portas abertas — e a convidar outros para atravessá-las com ele.
Natural de Olinda, cresceu não apenas entre ladeiras, belos carnavais e história. Ele também esteve entre folhas de papel, revistas velhas de quadrinhos e histórias que sua mãe, Ivanise, encontrava aqui e ali com o dinheiro contado.
“Minha infância foi muito pobre”, ele lembra, “mas minha mãe, sempre que podia, comprava um gibi da 'Turma do Tio Patinhas' ou algum livrinho de história infantil e isso foi estimulando a minha criatividade.”
José Neto é designer, diretor de arte, publicitário e mestre de RPG — há mais de dez anos guiando personagens e pessoas por labirintos de escolhas, mapas impossíveis e tramas que nunca são exatamente como o narrador planeja.
Neste mês, foi uma das principais atrações da primeira edição do Let’Geek, evento realizado no Shopping Tacaruna que ousou bater de frente com o Super-Con, o maior e mais consolidado encontro geek de Pernambuco. José Neto venceu uma enorme batalha — especialmente no coração dos que estiveram ao seu lado.

Na ocasião, ele fez o pré-lançamento do livreto da campanha Fanthoria, novo cenário do projeto Crônicas Fantásticas. Em vez de apenas apresentar a obra, ele narrou ao vivo uma sessão com os participantes. Foi um daqueles momentos em que a linha entre plateia e palco se apaga: todos jogando, todos criando juntos. Fanthoria é um livro de RPG que pode ser comprado a partir de R$ 15, por se tratar de um financiamento coletivo. A entrega para os compradores será realizada em janeiro. Tic tac.
Acredite: é um mundo onde os deuses foram embora. Onde a justiça vacila. E onde um grupo improvável de aventureiros — uma halfling ladina, um draconato guerreiro, uma barda tiferina, um elfo druida e uma quimera maga — acaba arrastado para o centro de um ritual antigo e perigoso. “Fanthoria é meu legado”, diz José Neto, como se os geeks que ouvem aceitassem a palavra “fim”.
O “fim” a que ele se refere é o encerramento do projeto Crônicas Fantásticas, que ele cofundou em 2017. Depois de sete anos de conteúdo sobre RPG e literatura fantástica, a produção está sendo encerrada.
“O Crônicas nunca foi uma fonte de renda e manter a produção de conteúdo junto com a vida profissional com um emprego comum se tornou inviável, então depois de muitas noites em claro, decidi encerrar o projeto, mas não sem deixar um legado.”
Em entrevista à Coluna Pernambuco que encanta, ele falou sobre o fim do Crônicas Fantástica, sendo contestado mil vezes por esta colunista que via sem parar, já na faculdade de jornalismo, a saga de Cavaleiros do Zodíaco, com 114 capítulos. Os super-heróis não morrem de verdade. Ser geek, na verdade, é ter poderes que poucos sabem.
Digo a ele, portanto, como uma profecia. Fanthoria é uma pausa.
Jornada desafiadora

Crônicas Fantásticas dá uma pausa após uma das campanhas mais épicas. “A gente começou com uma página no Facebook, depois virou blog, site, editora digital, clube de assinatura. Recebíamos originais de autores do Brasil inteiro, participei da Bienal de Pernambuco”, conta, em feitos que não param.
Segundo ele, a Confraria das Crônicas Fantásticas chegou a publicar contos ilustrados e diagramados por uma equipe de mais de 20 pessoas.
Agora, José Neto, o criador de Crônicas Fantásticas, pretende levar a magia para outros projetos. “Tenho muitos outros projetos: podcast de storytelling, histórias em quadrinhos, livros. Só que agora vou fazer tudo no meu tempo”, contou, lembrando que a pressão das redes sociais sempre o angustiaram.
O geek que virou mestre

O RPG entrou na vida dele por volta dos 20 anos, e virou paixão à primeira rolagem de dados. “Por conta do RPG, hoje tenho habilidades sociais mais desenvolvidas, consegui contornar a timidez e desenvolvi um senso mais crítico e uma visão mais ampla sobre diversos assuntos.”
Foi narrando que aprendeu a improvisar sob pressão. E foi essa habilidade que o salvou de uma enrascada na vida real: numa entrevista de emprego, perguntaram como ele lidava com situações difíceis.
“Eu narro RPG religiosamente todos os finais de semana a mais de dez anos. Já tive que lidar com muito jogador caótico fazendo bizarrices na história que estávamos construindo. Acho que criei uma casca grossa que me impede de ficar nervoso em situações caóticas.” A entrevistadora também jogava RPG. Ele foi contratado.
Hoje, ainda mantém três campanhas semanais: uma no domingo, outra na terça, outra na sexta. “Basicamente, sou o mago responsável por manter o multiverso em ordem. Ou, em termos menos nerd: sou o co-criador do projeto, roteirista das aventuras, editor dos conteúdos e, vez ou outra, a voz narradora dos dramas e piadas internas.”
Quem entra no clube geek
José Neto defende que ser geek não tem idade. “Com toda certeza! O mundo geek não tem porteiro na entrada. Pode chegar com trinta, quarenta, sessenta anos — o importante é ter curiosidade, paixão e principalmente ser quem você realmente é.”
Para ele, o geek é alguém que carrega consigo o brilho da infância, mesmo quando o mundo exige seriedade. “Costumo dizer que não ‘vira’ nerd ou geek, a pessoa já nasce dentro desse universo porque isso já ‘vem de fábrica’ sabe?”
Cosplay, magias e regras quebradas
Se pudesse hackear o tempo por 24 horas, José Neto sabe exatamente onde queria estar. “Fácil: me manda direto pros bastidores da trilogia original de O Senhor dos Anéis, versão Peter Jackson. Quero ver cada prótese, cada peruca, cada piada interna da equipe. E vou de cosplay, claro — provavelmente como mago de bastão e capa, só pra causar inveja no Gandalf e talvez ganhar um papel de figurante na cena do conselho de Elrond.”
Ele também sabe exatamente qual seria seu item mágico: a lendária Bag of Holding, uma bolsa que carrega até 300 kg, mas pesa só 7 kg. “Para quem anda com mapas, miniaturas e MUITOS LIVROS como um mestre de RPG, essa bolsa é mais que útil.”
E, claro, já pensou sobre seu alinhamento numa ficha de personagem. “Tendo a me ver mais como ‘Caótico Bom’ ou ‘Caótico Neutro’ porque sou do tipo que quebra umas regrinhas mas sempre por alguma causa bacana… rs”
A mãe, a memória e o multiverso

Há uma figura que ele nunca deixa de citar. “Minha mãe é a maior delas. Ela não era perfeita, mas fez o máximo que pode pra que eu tivesse melhores condições que ela teve… E ela conseguiu.” Com isso, plantou em José Neto o que ele mesmo continua espalhando: o encantamento. O mesmo que tantas pessoas esquecem quando crescem, mas que os geeks — os verdadeiros — carregam como um feitiço ancestral.
José Neto é um desses raros magos da realidade que continuam vendo o extraordinário nos detalhes. E que, mesmo encerrando uma jornada, já tem outra ficha sendo criada, outro mundo surgindo. Porque para ele e para os geeks, fim nunca é fim. É só uma pausa entre um ato e outro. Um dado que ainda vai cair.
Consolidar-se no universo geek não é tarefa fácil
Embora 40% dos entrevistados na pesquisa Relatório Cultura e Arte no Brasil - Hábitos e Comportamentos dos Brasileiros se declarem fãs de cultura pop, menos da metade vai a fundo nos conteúdos. Este mesmo levantamento mostrou que, no Brasil, 16% dos pesquisados se consideram nerds e 14%, geeks. Por isso a importância de iniciativas como esta do Shopping Tacaruna, gratuitas, que valorizam a beleza de ser geek.
O Nordeste é um polo de geeks
Um levantamento do Grupo Omelete com a MindMiners aponta que 26% dos geeks vivem na região Nordeste, o que representa cerca de 7,38 milhões de pessoas. Considerando que 18% da população nordestina está em Pernambuco, chega-se à estimativa de 1,33 milhão de geeks no estado. Vale lembrar que, desse total, nem todos são geeks de carteirinha.
Mais do que um estilo, uma forma de viver
Ser geek é, no fundo, uma forma apaixonada de estar no mundo, cujo pano de fundo é a cultura pop. A presença desse público tem impulsionado eventos como o Super-Con Recife e a Convenção do Orgulho Nerd-PE, que reúnem milhares de fãs de cultura pop, tecnologia, animes, HQs, games e ficção científica. Além do entretenimento, o segmento movimenta setores como educação, comércio e turismo. O Super-Con atraiu neste último fim de semana mais de 25 mil pessoas.

O orgulho de gostar muito
A beleza de ser geek está em... gostar sem medo de gostar muito; celebrar a criatividade e o conhecimento; resgatar o que te formou e enfrentar o mundo com referências extraordinárias. Em vez de conselhos genéricos, o geek pode se inspirar em Gandalf, Spock, Luffy, Chihiro ou Yoda. E tudo bem. Cada um tem o herói que precisa. E acredite. Tem muito mais mistério por trás desse público colorido!
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