Jazz de um capixaba nos Estados Unidos
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Ser estrangeiro e decidir tocar jazz onde o jazz nasceu é algo que pede certa atitude. Ainda mais sendo um brasileiro vivendo nos Estados Unidos, como é o caso do compositor e contrabaixista capixaba Andrey Gonçalves.
Aos 41 anos, o músico está nos EUA há mais de oito, cursa Doutorado em Jazz e Educação Musical pela Universidade de Illinois e tem batalhado para fazer o seu nome.
E o esforço tem dado grandes resultados. Não só no universo acadêmico, mas também pelos palcos e plataformas de streaming mundo afora.
Além de uma lista de shows na Europa, na América do Sul e nos EUA, Andrey lançou, no fim do ano passado, o “Nocturnal Geometries”, o seu 1º álbum, composto por sete faixas de um jazz contemporâneo.
E talvez, como o músico conta, esse trabalho não teria existido se não fosse o suporte que recebeu de seu professor de composição Jim Pugh. O músico já foi trombonista de nomes como Chick Corea e atualmente toca com Steely Dan.
“A contribuição do Jim foi massa! Fui aluno da Fames e sempre fui fã de samba e chorinho. Quando fui fazer o doutorado em composição e me senti frustrado, ele me aconselhou a não imitar os americanos na hora de tocar, e sim 'ser o Brasil'”, lembra o capixaba.
E continua: “E aí, obviamente, comecei a compor dentro do jazz, mas com conceitos melódicos que eu estava acostumado”, destaca.
Assim, o contrabaixista passou um ano compondo ao piano. Até que, dois anos depois, se reuniu com cinco músicos e juntos gravaram o disco todo ao vivo.
Participaram das sessões, que aconteceram em janeiro de 2019, Kurt Reeder (piano), Andy Wheelock (bateria), Robert Brooks (saxofone tenor), Robert Sears (trompete) e Ethan Evans (trombone).
E, embora seja um contrabaixista, Andrey garante que seu trabalho não vai na mesma linha dos colegas de instrumento. “Não é um álbum tradicional de baixista, em que os caras fazem do instrumento o centro da composição. Há até faixas em que faço alguns solos, porém esse é um disco de músico”.
Andrey Gonçalves - Músico “Não quero vender raiva ou ódio. Quero transformar”
AT2: Faz jazz onde o gênero nasceu. É um privilégio ter a oportunidade de vivenciar essas raízes de perto?
Andrey Gonçalves: Engraçado é que, de todo tempo que moro aqui, fui a Nova Orleans só no ano passado. Faço parte de uma big band e participamos da JEN Conference, a Jazz Educators Network Conference, que reúne uma galera do mundo todo. Foi a primeira vez que vi pessoas de lá tocando jazz. Um privilégio.
Como foi o seu momento na cidade onde o jazz nasceu?
A primeira coisa que eu quis fazer foi ir a um boteco ver as pessoas tocando, uma big band. A forma que o jazz é tocado em Nova Orleans é totalmente diferente do jazz em Chicago, onde vivo. O groove é diferente. Também tenho que considerar que sou brasileiro.
Da mesma forma que gravei um samba no meu disco, onde todos os outros instrumentistas são americanos. Ficou legal, mas não é igual a samba com brasileiros.
O jazz e o samba têm raízes negras. Há outras ligações?
As raízes africanas que se desenvolveram nesses países se desenvolveram em manifestações culturais. Samba e jazz são uma delas.
Quando houve uma rebelião dos escravos aqui nos EUA, eles usaram tambores. A partir daí, os tambores foram proibidos. Já os negros do Brasil tinham acesso a ferramentas que permitiam que manifestassem laços com a cultura deles. Nos EUA, isso foi eliminado. A música africana aqui se desenvolveu de uma forma diferente.
Em Nova Orleans, os instrumentos mais característicos do estilo são os de sopro e o piano. São instrumentos europeus. No Brasil, quando se vê a história do samba, é batucada. É percussiva. Se comparar chorinho com jazz, talvez tenha mais semelhanças.
Define seu álbum como jazz contemporâneo. Por quê?
Quando estudei com o professor Jim Pugh, ele começou com a parte mais tradicional do jazz. Depois, ele apresentou como compor jazz com técnicas não muitos comuns ao jazz. Ele disse que, primeiro, eu tinha que respeitar minha voz interna e depois utilizar técnicas.
Que voz interna era essa?
Para começar, sou brasileiro! Não tenho tradição no jazz. Comecei a tocar baixo e jazz muito tarde. Todos os pré-requisitos não fazem parte do meu currículo.
“Ocatonic Lullaby” é uma música para sua filha, Sophia, de 10 semanas. Que sentimento quis passar para ela?
Paz e tranquilidade. Quando fiz, liguei para minha esposa e disse que era uma música para nosso filho. Um ano depois, ela engravidou. Foi emocionante.
Já compôs o seu 2º disco?
Inicialmente, se chama “The Broken Suite”. Vai ter um tema mais agressivo e tem a ver com atropelamento que sofri em Vitória, em 2018. Fraturei vários ossos, inclusive na cabeça. Voltei aos EUA e, novamente, o Jim Pugh me aconselhou. Disse para eu transformar minha raiva em melodias. Mas é um trabalho mais agressivo com os timbres. As melodias passam sentimentos conturbados. Não quero vender raiva ou ódio. Só quero transformar algo de um período em música.
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