Biografia narra intensidade de Arlindo Cruz tanto no samba quanto em sua vida
Livro, que será lançado este mês, pela editora Malê, começa com os dias que antecedem o AVC sofrido por Arlindo em março de 2017
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"Se alguém quiser cancelar o Arlindo vai ter um prejuízo. Ele é um mestre, um gênio pelas coisas que fez pelo samba. Mas um ser humano como qualquer outro, com acertos e erros", diz o jornalista Marcos Salles.
Ele é o autor de "Sambista Perfeito", biografia de Arlindo Cruz, que sai, neste mês, pela Editora Malê. Ele faz o primeiro evento oficial do livro na Livraria Travessa, da Barra da Tijuca, na próxima segunda-feira (7).
Marcos Salles é testemunha ocular da geração do Cacique de Ramos. Foi levado pelo produtor Milton Manhães às quartas-feiras no clube em Olaria, onde o futebol era seguido de roda de samba. Depois, foi convidado a escrever a contracapa do LP "Seja Sambista Também" (1984), quarto do Fundo de Quintal. Tornou-se seu braço direito, coordenando as produções de toda essa turma dos anos 80. Foi assim que conheceu Arlindo, integrante do Fundo de Quintal na época, e sua então namorada, com quem o sambista se casaria em 2012, Babi Cruz.
Foi ela, aliás, quem impulsionou a escrita do livro. Em 2021, Marcos foi praticamente intimado por Babi: "Falei com ela que tinha que escrever um livro verdadeiro. Um livro que contasse toda a sua história. Não daria para não tocar em temas delicados porque todo mundo sabe. E ela me deu toda liberdade".
O livro começa com os dias que antecedem o AVC sofrido por Arlindo em março de 2017. Na manhã da sexta-feira, dia 17, iria para São Paulo cumprir uma agenda de shows com seu filho Arlindinho. Durante o banho, depois de pedir à Babi para pegar seu celular --queria gravar uma melodia nova que nascia na sua cabeça-- Arlindo caiu.
A partir do segundo capítulo, o leitor descobre como ele se tornou o "Sambista Perfeito". Filho de Aracy Marques com Arlindo Domingos da Cruz, aprendeu os primeiros acordes do cavaquinho com o pai. Arlindão, como era conhecido, era cavaquinista do conjunto Mensageiros do Samba da Portela.
Arlindão foi preso, em 1971, por envolvimento com o Esquadrão da Morte, embrião das milícias atuais. Mas seu filho continuou a frequentar a casa do sambista fundador do Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo. A primeira vez de Arlindo em um estúdio foi para gravar cavaquinho no disco "Samba de Roda" (1975), de Candeia. Tinha apenas 15 anos. "O Arlindo estava ali, pequeno, tocando com ele e pegando muitos ensinamentos de negritude. Tanto que, no Fundo de Quintal, ele fez muitos sambas desse jeito. Candeia foi seu grande professor", diz Salles.
Foi dessa fonte que nasceram os pout-pourris de partido-alto que marcaram o repertório do Fundo de Quintal. Arlindo entrou no grupo em 1981, substituindo Jorge Aragão no banjo. E o entrosamento com Sombrinha gerou ciúme nos outros integrantes. Foram dez álbuns até sua saída, em 1993 --entre discos de ouros e de platinas.
Outra fonte de inspiração foi seu conturbado relacionamento amoroso. Arlindo e Babi ficaram noivos em 1986, mas brigas e traições resultavam em constantes idas e vindas. Algumas geraram clássicos cantados até hoje, como "Vai Embora Tristeza". Outras são feridas que não devem ser romantizadas, como o nascimento de outro filho, Kauan Felipe, fruto de outra relação.
Arlindo e seu banjo continuaram fazendo história. Após Almir Guineto se afastar do instrumento, por problemas nos dedos, Arlindo se torna um dos principais músicos a dar continuidade ao legado sonoro do Fundo de Quintal. "É o cara que mais gravou banjo. Ele conta três mil músicas, mas acho que são mais. Porque ele praticamente morava nos estúdios", diz o autor do livro.
Para Marcos Salles, Arlindo Cruz "é o elo entre Candeia e Só No Sapatinho" --grupo que se destacou no pagode romântico dos anos 1990. Ele foi compositor de inúmeros sucessos do samba e do pagode atual, mandando letras e insistindo para entrar nos discos dos artistas do segmento. "Ele queria ser padrinho do mundo todo", brinca o biógrafo.
A intensidade descrita ao longo do livro pareceu transbordar em outros aspectos de sua vida. Um capítulo à parte é dedicado à relação do Arlindo com as drogas, em especial à cocaína. "Nos anos 80, só não foi na cocaína quem não quis. Eu estive com ela do meu lado, mas aprendi com o Milton [Manhães] a lidar com isso. Era um tempo que chegava com muita facilidade. Quem entrava nisso, para sair , era uma luta. E o Arlindo brigou eternamente para sair".
Em trecho do livro, Arlindinho diz que seu pai estava limpo em 2017: "Ele chegou a parar. O início de 2017, ano do AVC, foi disparado o melhor dele. Não bebia, só fumava maconha, que dizia que não ia parar nunca. Falaram que ele tava cheirado no dia do AVC. Zero. Não estava. É claro que o histórico atrapalhou na recuperação, mas meu pai estava limpo. Há uns sete, oito meses sem cheirar".
Babi confessa que ainda não conseguiu ler o livro todo. O peso emocional é grande. Arlindo está internado desde 25 de março com pneumonia. "Ele estava com a alta assinada pelos médicos, mas dependia da chegada do homecare. Como teve feriado de Corpus Christi, o equipamento não chegou. Nesse ínterim, ele deu uma piorada. Continuamos no hospital", relata.
"São oito anos em que a cada internação ele fica menos resistente", diz. Mesmo assim, houve momentos de esperança: "Ele chegou a esboçar algumas palavras. Eu dizia: 'pai, você tá de saco cheio de estar deitado nessa cama, né?'. E ele dizia: 'tô'. 'Pai, você me ama?'. Ele: 'a-mô'. Isso para mim era muita coisa".
Agora, Babi é a sua cuidadora. "O Arlindo deixou de ser meu marido para ser meu filho. Para ser mais dependente de mim do que meus netos. Meus netos reclamam de fome, de sede. O Arlindo, eu tenho que adivinhar. Tenho que usar minha sensatez e nossos mais de quarenta anos de convivência para entender suas expressões", diz, emocionada.
"É no toque que eu descubro se ele está com dor de ouvido, é no toque que eu descubro se ele está com gases. Não tem ninguém nessa vida que é capaz de ficar no meu lugar."
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