Trump, Zelensky e a câmera
Confira a coluna de domingo (02)
Sob a batuta de Trump, o ritmo das relações internacionais continua acelerado. Cronistas que se debruçam sobre temas diplomáticos precisam ficar espertos, entre a escrita e a publicação eventos imprevistos envelhecem seus textos.
Era o que ía acontecer esta semana. Eu tinha escolhido como tema para esta crônica a nota do Itamaraty em resposta a um tuíte, publicado no X, em que o Departamento de Estado dos EUA criticava recentes decisões judiciais do Ministro Alexandre de Moraes. Minha intenção era explicar a importância dessas Notas, com maiúscula, que veiculam a palavra do Chanceler e têm valor de instruções para todos os diplomatas, na Secretaria de Estado e nos postos no exterior. Por isso, revestem-se de formalismo. Cada palavra é pesada com cuidado, a fim de que não se diga mais nem menos do que importa dizer. O formalismo diplomático, que pode parecer frescura, é na verdade um código de boas condutas que, pela experiência secular, servem de anteparo a gafes e a tolices piores.
Estava eu nesse ponto da crônica quando veio a notícia de que, mais uma vez, Trump se meteu numa encrenca. O cenário era solene, o Oval Office, que é há um século a sala de trabalho dos presidentes americanos. O assunto, da maior transcendência, era a negociação final e a assinatura por Trump e Zelensky de acordo para que os EUA explorem as reservas minerais da Ucrânia. Tudo que se quer nessa hora é um evento organizado com apuro, inclusive protocolar, para que tudo dê certo. Não houve esse cuidado, e deu tudo errado.
Trump recebeu Zelensky na porta da Casa Branca, uma reverência digna de nota. Não se conteve, porém, e fez piadinhas sobre a indumentária do visitante, que há tempos se veste com um suéter preto com o brasão de armas ucraniano, e botas de combate. Trata-se de um recurso de marketing político do presidente de um país há três anos em guerra. Um purista pode considerar o traje de gosto duvidoso, mas um presidente que recebe no Oval Office, para reuniões de alto nível, um ministro-que-não-é-ministro de calças jeans, boné de beisebol e um filho pequeno na cacunda, não pode reclamar de fashion.
O encontro foi televisionado, outro erro primário. Trump é um ser performático, adora uma câmera, mas nessas horas a sua assessoria deveria contê-lo. A TV mostra tudo que acontece em tempo real, e isso pode se tornar constrangedor, como de fato foi. Erro pior ainda foi não ter sido providenciado um intérprete para Zelensky. O ucraniano fala um inglês limitado, e se mostrou ainda mais indefeso quando teve que enfrentar não só Trump, como também o vice J.D.Vance.
J.D.Vance sequer devia estar na sala; vice-presidentes não costumam participar desse tipo de evento. Já que estava na sala, devia ficar calado, mas falou, e sua intervenção foi lamentável. Acusou Zelensky de ingratidão, porque o ucraniano pedia, em contrapartida pelas terras raras, garantias de que os EUA rechaçariam novas investidas russas sobre o seu país. A partir daí a conversa degringolou, Zelensky saiu sem o apoio dos EUA e Trump sem as terras raras ucranianas.
Longe de mim a ingenuidade de imaginar que o desrespeito ao protocolo foi a causa do fracasso da reunião. A própria percepção de fracasso pode ser contestada. Aliás, do ponto de vista de Vance, pode ter representado um ganho de prestígio perante seus seguidores. O que lamento é o descompromisso dos atuais detentores do poder nos EUA com a boa política e com a diplomacia.
A questão ucraniana não é simples. Já tive oportunidade de ressalvar, em uma crônica, que as posições russas podem ser defendidas com bons argumentos e as iniciativas da OTAN não estão imunes à contestação de muita gente boa. O argumento que quero deixar aqui é que a preferência dos atuais detentores do poder nos EUA pela truculência pode metê-los, e meter o mundo todo, numa encrenca monumental. Na geopolítica de hoje, é impossível tratar da Ucrânia sem relacioná-la com Taiwan, e com a possibilidade de nuclearização do Japão e da Coreia do Sul. Nem descurar da hipótese de que uma volta dos EUA ao isolacionismo pré-1938 redunde na remilitarização da Alemanha e do resto da Europa.
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