Partilhas territoriais
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Domingo passado, comentávamos que a Ucrânia deverá converter-se num dos primeiros testes da política externa do novo governo Trump. O assunto interessa de perto ao Brasil, até porque a Rússia é nossa parceira no Brics, mecanismo cuja presidência assumiremos em janeiro do próximo ano.
A expectativa da maioria dos observadores é de que a solução consistirá na imposição de um cessar-fogo imediato, com a Rússia mantendo parte das terras ocupadas e a Ucrânia recebendo, em contrapartida, vultosos investimentos americanos e europeus.
Parece uma proposta lógica, que não obstante precisa ancorar-se em sérias negociações entre as partes. Não esqueçamos que outras tentativas de resolver pendências mediante partilhas de territórios resultaram em consumadas tragédias.
A história europeia nos lembra que a incorporação da Alsácia e da Lorena pelo kaiser Guilherme I, na esteira da derrota francesa na guerra franco-prussiana de 1870, desencadeou um longo período de resistência francesa e uma verdadeira guerra de guerrilhas que, a rigor, só teve fim na década de 1950, com a criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, precursora da União Europeia.
Uma das partilhas mais brutais foi a da Índia, em 1947. Sob colonização da Companhia Inglesa das Índias Orientais desde meados do século XVIII, a Índia tornou-se, um século depois, sob a Rainha Vitória, na “mais bela joia da Coroa Britânica”. O discurso pró-democracia, declamado em verso e prosa pelo Raj britânico, e ignorado na prática colonialista, foi, contudo, bem assimilado por uma notável geração de políticos indianos.
Líderes do movimento, Gandhi e Nehru fundaram o Partido do Congresso Indiano e o transformaram no núcleo da reação independentista, com base em Calcutá, então capital e sede do governo. Não foi à toa, porém, que a Inglaterra mereceu o epíteto de “pérfida Albion”.
Diante da onda democratizadora, a reação dos colonizadores foi mudar a capital para Nova Delhi e, com base numa discutível incompatibilidade religiosa, dividir o país em três: os hindus e os sikhs ficaram com a Índia, e os muçulmanos foram deslocados para o Paquistão Ocidental e Oriental (hoje Bangladesh).
A medida foi implementada a ferro e fogo; mais de 12 milhões de pessoas se viram obrigadas a fugir de um país para outro e, sem a preparação necessária, massacraram-se barbaramente, numa calamidade responsável pelo clima hostil que perdura até hoje e já ocasionou quatro guerras entre Índia e Paquistão.
Pode-se incluir no rol dos desacertos a anexação da Manchúria chinesa pelo Império Japonês, em 1932, que causou ressentimento cultivado em cerimônias encenadas, todos os anos, pelos governos chineses. Ou ainda a partição do Vietnã, em 1954, entre o norte dominado pelo Viet Minh comunista e o sul da República do Vietnã, manobra que redundou em mais de 3 milhões de mortos. Outro caso célebre, e atualíssimo, foi a partição da Palestina e a criação do estado israelense em 1948. A decisão das Nações Unidas, por mais meritória, desencadeou décadas de hostilidades, terrorismo e barbárie, como demonstram as fotografias da situação atual em Gaza.
Em Washington, Joe Biden afunda no ostracismo. Quase ninguém lembra dele, e quando lembra é para falar mal. Além da enxurrada de críticas por ter concedido o perdão presidencial a seu filho Hunter Biden, condenado pela Justiça por posse ilegal de arma e evasão fiscal, Biden veste agora a carapuça de militarista, ao encaminhar ao Congresso um pacote de ajuda militar à Ucrânia, tardio e de improvável aprovação, a esta altura do campeonato. Com tudo isso, perde a estatura de estadista, que bem ou mal vinha cortejando, e retira dos holofotes midiáticos o ministério de Trump, cujos componentes, cada um mais controverso que o outro, parecem saídos de uma cena de bar em Star Wars.
A política não tolera o vácuo. Neste fim de semana, Trump estará em Paris para as cerimônias de reabertura da catedral de Notre Dame, e deverá conversar com Macron e outros líderes europeus. Tendo prometido, durante a campanha, resolver a questão ucraniana antes mesmo de tomar posse em 20 de janeiro, é de se esperar que algum anúncio seja feito. Tomara que seja sobre um processo de paz, embora a prudência nos lembre o Barão de Itararé, para o qual “de onde menos se espera, dali é que não sai nada mesmo”.