Papa Francisco vai fazer falta
Confira a coluna deste domingo (27)
Diante da pobreza da atual safra de líderes mundiais, a partida do Papa Francisco é motivo de tristeza e apreensão. Detrás da bonomia e do bom humor, Francisco era firme em suas convicções e as defendia sem medo de controvérsias. Trabalhou pelas boas causas e assim se tornou um expoente da diplomacia mundial no primeiro quarto do século XXI.
É atribuída a Stalin, como exemplo da visão materialista e militarista do poder, a provocação: “Quantas divisões tem o Papa?”. De fato, o Vaticano não tem exército. Mas Stalin passou, a União Soviética acabou, e o Vaticano continua firme e forte, como modelo acabado de “soft power”.
A liderança espiritual faz com que os Papas se tornem celebridades mundiais e os capacita a participar de debates sobre os grandes temas internacionais. Representam a Santa Sé, um Estado reconhecido pelo Direito Internacional, que mantém relações diplomáticas com mais de 180 países.
O Papa Francisco usou ativamente o seu acesso à diplomacia. Seu antecessor, o cardeal alemão Joseph Ratzinger, o Papa Benedito XVI, tinha fixado sua atenção na Europa. Uma de suas palestras mais famosas, proferida em 2006 na Universidade de Regensburg, gerou problemas com o mundo muçulmano, que ele considerou violento.
Em contraste, Francisco quis levar os cristãos para “além do muro”. A sua, era “a igreja dos pobres”, um verdadeiro “hospital de campanha”, com os padres tão próximos dos pobres que “ficariam impregnados com o cheiro das suas ovelhas”. Denunciou o clericalismo, em que o clero se considera superior aos fiéis, e dirigiu os religiosos para as periferias, “não apenas as geográficas, como também as existenciais”, a fim de conectá-los com os processos que moldam a moderna era global.
Com essa diretriz, alterou a composição do Colégio Cardinalício. Agora, dos 135 cardeais, 23 são asiáticos; 20 norte-americanos; 18 da América Latina; 18 também da África, e 3 da Oceania. A Europa, antes majoritária, tem hoje 53 cardeais.
Usou a sua visibilidade para fazer da pobreza um tema global. A mudança climática era outra preocupação permanente; fez questão de detalhar, numa publicação distribuída aos católicos, ações a serem tomadas para minimizar os efeitos das transformações no clima e na temperatura. Opunha-se às guerras e àquela que é uma de suas mais terríveis consequências, a imigração.
Pregou continuadamente contra a violência. Em sua última mensagem aos fiéis, clamou pela paz no Congo, em Gaza, no Sudão, Ucrânia e Iêmen. Reservava sempre uma oração em favor dos prisioneiros de guerra. Seus constantes apelos em prol da não-condenação de líderes políticos levaram alguns analistas apressados a rotulá-lo de neutralista, e estranharam quando aceitou, por exemplo, dialogar com Mia Aung Hlaing, ditador de Myanmar.
Francisco não admitia, porém, alinhamentos com partidos políticos, que alguns cardeais, como Ratzinger, consideravam estratégicos. Dizia que “o sagrado não pode ser instrumentalizado pelo profano”. Quando advogou negociações entre Zelensky e Putin, seu objetivo era favorecer o diálogo e a diplomacia, necessários mesmo, ou sobretudo, quando a situação é ambivalente e contraditória.
Jorge Mario Bergoglio foi Arcebispo de Buenos Aires de 1998 a 2013, quando foi eleito Papa. Nos tempos de padre, gostava de caminhar nas ruas de sua cidade e, com seu jeito despojado, torcia abertamente pelo San Lorenzo, time do bairro de Almagro. Era, em suma, um personagem popular e simpático. Por isso, fiquei surpreso ao saber que sua morte não causou uma comoção nacional na Argentina, consequência, segundo me dizem, de suas posições políticas.
De 1976 a 1983, a Argentina foi governada por juntas militares. Na igreja católica, a teologia da libertação, de viés marxista, predominava na esquerda religiosa. Bergoglio se distanciou dos padres radicais, e foi por isso acusado de compactuar com o governo. Embora negasse todas as denúncias, a esquerda virou-lhe as costas. Como tampouco tinha o apoio dos militares, ficou num vácuo político. Teve sempre o apoio do Vaticano, mas perdeu a simpatia de boa parte do ultrapolitizado povo argentino.
Esta é a provável razão pela qual o Papa Francisco nunca visitou a Argentina. Esteve no Paraguai, no Chile e no Brasil, e nós sabemos do afeto que sentia pelos brasileiros, carinho que retribuímos de todo coração. Vá em paz, amigo Francisco. Que Deus o tenha.
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