Meligeni fala de bullying e faz homenagem ao pai em novo livro: ‘Um lembrete do que falta no mundo’
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Acostumado a ser referência nos comentários de tênis na TV e nas redes sociais, Fernando Meligeni está cada vez mais à vontade para compartilhar ideias e boas histórias também nos livros. O ex-tenista está lançando sua quarta obra, “As decisões do coração estão sempre certas” (em parceria com o jornalista André Kfouri, pela Editora Sextante), com foco nos aprendizados que obteve com seu pai, Osvaldo Meligeni.
Aos 53 anos, ele já lançou uma biografia, em 2008, e dois livros mais técnicos, com dicas de tênis. Sua nova obra é mais difícil de ser catalogada. Tem traços biográficos, lições de vida, boas histórias e aprendizados conquistados dentro e fora de quadra, como não poderia deixar de ser.
“Quem me conhece um pouco sabe que eu fujo dos rótulos. Eu não gosto de rótulos e nem dos extremos. Quando escrevia, pensava a obra mais como uma homenagem ao meu pai”, diz Fernando em entrevista ao Estadão. “Várias vezes escrevi chorando… e 90% do livro foi escrito enquanto eu escutava tango.”
A referência ao estilo musical não é por acaso. Cada capítulo do livro é um título de alguns dos tangos favoritos de Osvaldo, figura marcante, de raro charme, que extrapolava as fronteiras da família e do seu trabalho. O pai de Fernando foi fotógrafo de sucesso na Argentina. E se tornou reconhecido também no Brasil ao aceitar proposta de emprego tentadora que exigia um sacrifício: deixar para trás sua história na Argentina para viver com a família em outro país.
Parte das dificuldades envolvidas nesta saga é relatada em primeira pessoa pelo ex-tenista profissional. Entre histórias familiares e desafios na quadra, Fernando fala pela primeira vez sobre situações de bullying que viveu em solo brasileiro por ter nascido na Argentina. E revela como a fibra do pai foi decisiva para superar os obstáculos.
Osvaldo, que morreu em 2015 aos 73 anos, brinda Fernando e, por consequência, seus leitores, com aces de sabedoria e “winners” sobre a vida de tenista, daqueles só percebidos por quem consegue ver o mundo do esporte de fora. Entre um tango e outro, Osvaldão, como diz o filho, discorre sobre a importância da índole, da integridade, sobre as diferenças entre sonhos e objetivos na vida. Tudo isso em meio a passeios de barco, grande paixão do velejador amador.
Trata-se de uma leitura agradável e que só se tornou possível graças a um antigo pedido/conselho de pai para filho: “Fer, quero que você me prometa que, antes de morrer, você vai devolver ao tênis tudo o que ele te deu”, revela Fernando nas páginas do livro, explicando em parte o sucesso do ex-tenista em sua carreira de divulgador da modalidade em tantas frentes bem-sucedidas. Confira os principais trechos da entrevista ao Estadão:
Como surgiu a ideia do livro?
Tudo vem daquela conversa com o meu pai, de devolver ao tênis tudo o que você aprendeu. Foi uma conversa “de barco”, como tantas que têm no livro. Era um momento onde a gente tinha nossas conversas. E nos últimos tempos eu tenho colocado muito na minha vida os ensinamentos do meu pai. Tem um pouco de saudade também, um pouco de de referência, um pouco do meu momento de pai, que eu estou vivendo agora. Minha filha começou a jogar bola (futebol). E você se vê numas encruzilhadas: o quanto você tem de se meter ou não (no lado esportivo da filha). Aí o meu filho tem de fazer uma prova de Cambridge e você se coloca numa situação de como você faz a abordagem. Tudo isso me leva ao passado. Um tempo atrás eu comecei a escrever muito sobre o meu pai, muitas histórias. Percebi que tinha muita história a ser contada. E eu decidi que tinha que ser com o André Kfouri porque é meu amigo pessoal e conheceu o meu pai. E ele percebeu que eu tinha um livro de memórias fortíssimo e foi conectando as histórias.
Como classificar a obra?
Quem me conhece um pouco, sabe que eu fujo dos rótulos. Eu não gosto de rótulos e nem dos extremos. Quando escrevia, pensava a obra mais como uma homenagem ao meu pai. Tudo o que eu sou é graças ao meu pai e à minha mãe. Tive de tomar um pouco de cuidado porque é uma obra muito voltada ao meu pai, e muita gente pode olhar e falar: ‘Ah, pera aí, tua mãe não teve responsabilidade (em sua criação)?’. Mas eu acho que cada cada cada pessoa tem uma responsabilidade. Se eu fizesse um livro da minha mãe, eu fari um livro sobre minha fortaleza. A minha força, de não me não me entregar, não me render.
Você se refere aos episódios de bullying?
Um dos pontos mais importantes desse livro, sem revanchismo nenhum, e poucas vezes falei sobre esse assunto, é o bullying. Me refiro a situações, como as que minha mãe viveu, ao sair chorando de uma confederação porque os caras ‘cagavam’ na cabeça dela e do meu pai por eu ser argentino. Minha mãe tem uma importância por esse lado. E esse livro foi feito mais pelo lado de ensinamento da relação pai e filho. A ideia era realmente sair do tênis. Não é um livro para tenista, mas é para tenista. Não é um livro para os pais de tenistas, mas é para os pais, qualquer pai. Não é autoajuda, mas é autoajuda. Alguns amigos leram o livro e disseram: ‘pena que o meu pai não era que nem o seu’, no sentido esportivo, de deixar eu ser quem eu queria. Esse é o recado que eu quero passar: o teu filho não precisa ser fotógrafo porque o pai é fotógrafo, não precisa ser médico porque o pai é médico…
No livro, você diz não lembrar a data da morte do seu pai.
Olha como isso é louco. Toda vez que eu preciso responder essa pergunta eu recorro à minha irmã. Eu pergunto o dia e o ano, porque eu não sei. Se você me perguntar quantos anos ele tinha, não vou te responder rapidamente porque não sei. Não sei se é uma trava pessoal. É meio louco isso porque, para a família, é como se ele não tivesse morrido. Porque ele acompanha a gente, as nossas decisões, mas sem sofrimento, sem saudosismo, apenas uma coisa agradável.
Escrever esta obra foi um processo terapêutico para você?
Eu nunca fiz terapia, nunca fui no psicólogo, nem na época que eu jogava. Eu me organizo muito tranquilamente. Eu vivo muito o momento, com muita intensidade. Se eu fico triste, eu fico triste naquele momento, eu não carrego comigo. Vejo o livro mais como uma homenagem ao meu pai, como um lembrete do que falta no mundo. Falta um pouco mais de Osvaldo no mundo. E não falo isso porque sou o filho. Meus amigos até hoje falam que o ‘Osvaldo era demais’, muito generoso, muito querido por todos. Ele era extremamente rigoroso no fazer o certo, no ser justo, no ter índole, mas ao mesmo tempo eu podia fazer o que eu quisesse. E ele sentava para conversar comigo (para me orientar). Quando eu falei que eu queria virar brasileiro, meu pai era veementemente contra. Mas nunca falou que eu não deveria virar brasileiro. Escrever virou uma terapia maravilhosa, mas não foi uma busca para resolver algum problema ou preencher alguma falta.
Seu pai te disse para devolver ao tênis tudo o que você aprendeu em sua carreira. O livro é mais uma parte desta ‘devolução’? Há mais projetos pela frente?
Eu não tenho projetos marcados. Eu nunca imaginei escrever quatro livros. Vou ser muito sincero: eu parei de estudar na oitava série. Vamos ser justos. Pensar que hoje eu sou um cara que muita gente me para na rua por causa da minha escrita, sendo que eu não sou jornalista - sou um comentarista de tênis que gosto de escrever. Ponto, e nem acho que escrevo tão bem. Eu escrevo com o coração, é uma outra escrita. Existe um mundo diferente entre o cara que sabe que é um baita de um escritor e o cara que traz emoção na escrita. Eu trago emoção.
Você também escreve bastante nas redes sociais…
Acho que 70% do que eu escrevo no dia a dia é de histórias que eu escutei, que eu adaptei, que eu quero mandar um recado. As pessoas que mais me alimentam são os meus sobrinhos (os tenistas profissionais Carol e Felipe Meligeni). Às vezes, recebo mensagem da minha sobrinha, que pergunta: ‘essa foi para mim, né, tio?’ Sim, foi (risos). Mas eu não botei o nome dela (risos). Minha esposa já me sugeriu escrever um romance. Não sei se tenho competência para isso. Mas quem sabe um dia…
Hoje você se tornou uma referência em termos de comentários e divulgação do tênis, com participação na TV, podcast, clínicas, livros… Como você lida com esse novo status? A divulgação do tênis sempre foi um plano para você?
Está muito claro que tive que me reinventar. Quando você para de jogar, as pessoas falam que você morre duas vezes, meio chavão. Quando para de jogar, você tem de se reinventar. Se não, a única coisa que sobra é dar aula de tênis, o que não é demérito nenhum. Eu não posso bater na porta dos meus patrocinadores e pedir para ser contratado apenas porque joguei bem tênis. Fui fazendo coisas que eu gosto. Aí vieram clínicas, talk show, podcast. Gosto de fazer essas coisas. Aí me falaram para fazer palestra: não gosto. ‘Ah, joga com empresários, você vai ganhar uma baita de uma grana’. Não gosto. Eu gosto de fazer projetos novos. Fiz um aplicativo de tênis que não deu certo. Fiz um curso online que precisei parar por um problema de saúde na família do meu sócio. Mas tenho muito orgulho dos meus projetos. Enquanto conversamos, eu vou lembrando de coisas que meu pai dizia: ‘eu prefiro muito mais ter um filho legal do que um filho campeão’. Não me interessa ter um filho melhor do mundo se ele for um babaca. Passo isso para os meus filhos. O que adianta passar por cima das pessoas, ser preconceituoso, dividir as pessoas?
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