Terra do tacacá e açaí inspira o samba do ano no Carnaval do Rio
Dialeto gay, ficção científica e enredo de terror também despertam a atenção, em ano sem uma canção antológica
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A safra de 2025 dos sambas-enredo do Rio não tem uma canção espetacular e que prometa se tornar memorável. Ainda assim, todas têm seus predicados e nenhuma delas pode ser considerada ruim.
Diferentemente de 2024, não há uma obra que pareça capaz de romper o que chamam de “bolha do Carnaval”, ou o grupo seleto de admiradores que acompanham as escolas de samba, às vezes o ano inteiro.
O academicismo, arrisco-me a dizer, é um provável obstáculo para retomar a popularidade vivida pelas escolas de samba até meados da década de 1990. Os temas fechados demais me parecem uma barreira para arrebatar o público em geral.
Letras e melodias em 2025 despejam uma profusão de clichês, com uma predominância de temáticas religiosas que, embora encantadoras para os interessados, soam cansativas a quem ouve o “disco” inteiro.
Há exceções, com louvor especial para a Grande Rio, que homenageia o Pará, estado do tacacá e do açaí. Presente na letra do Paraíso do Tuiuti, o dialeto pajubá, usado pela comunidade LGBT, também chama a atenção, mas em uma melodia não tão inspirada quanto outras deste ano.
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Como ouvinte — e jamais como especialista na folia —, aqui vão as impressões após audições contínuas pelos últimos meses. Não se pretende aqui antecipar notas de jurados, apenas comentar sobre as músicas. Mas não me furto a dar também alguns palpites sobre os efeitos nos desfiles.
Rafael Guzzo é editor de Economia e Política da Rede Tribuna e folião apaixonado pela Mocidade Independente de Padre Miguel
Leia abaixo os comentários sobre cada escola
Acadêmicos do Grande Rio
Grande nome da arte da Região Norte do País, Mestre Damasceno é um dos autores do samba da Grande Rio. Talvez os compositores de fora do território fluminense sejam uma explicação para a melodia tão fora da curva em meio às demais.
Em um canto mais cadenciado, o jogo de palavras flui deliciosamente, desde a primeira frase “a mina é cocoriô” até a citação às três princesas turcas da lenda amazônica — Jarina, Herondina e Mariana —, em um refrão poderoso.
O cantor Evandro Malandro consegue impostar bem a voz, como pede a composição, mas sem exageros, deixando a emoção fluir nas cordas vocais.
Os “especialistas de plantão” internet adentro consideram que a obra tende a não funcionar na avenida. Não arrisco um palpite. Mas afirmo que nada há de melhor neste ano em meio aos sambas-enredo cariocas.
Imperatriz Leopoldinense
Com um enredo afro, versando sobre orixás, a Imperatriz conseguiu quase um milagre. Mesmo cheio de palavras em iorubá, o samba “pega” na cabeça já na primeira audição. “Justiça maior é de meu pai Xangô”, diz o verso mais claro para os leigos, em melodia de ênfase inquestionável.
Lendo, o refrão com a letra “Oní sáà wúre! Awure awure!” parece difícil. Mas basta ouvi-lo para constatar a mágica conquistada pelos autores, cujos méritos não se pode negar.
Arrisco-me a dizer que a Imperatriz é uma das grandes favoritas para vencer em 2025, muito por causa de seu samba-enredo. Mas é uma música que não vai ser cantada fora do universo da “bolha do Carnaval”.
Unidos do Viradouro
A voz poderosíssima do intérprete Wander Pires aliada a uma excelente melodia são os pontos fortes do sambão da Viradouro para este ano. O enredo, também religioso, trata da entidade Malunguinho, o rei das matas, que, segundo o samba, “mata quem mata o Brasil”.
As variações melódicas e o clima de incentivo — diria que um ar de “levanta o moral” — caracterizam o samba, com o melhor refrão da safra. “Eu tenho o corpo fechado, fechado tenho o meu corpo, porque nunca ando só”, diz a letra.
Contudo, identifico na composição ao menos uma rima forçada, além das repetições perceptíveis aqui mesmo nas citações deste texto — o que para mim, como ouvinte, em nada desabona a obra, apesar de alguns clichês do universo da folia. Mas, em anos anteriores, esse tipo de característica já rendeu penalidades de jurados.
Beija-Flor de Nilópolis
Os versos mais emocionados de 2025 estão no samba em homenagem a Laíla, carnavalesco e dirigente multicampeão, morto em 2021, vítima da covid-19.
Trata o especialista na folia — vencedor em 12 dos 14 títulos da Beija-Flor — como uma entidade que segue viva. Tanto em espírito quanto nos conhecimentos transmitidos à geração atual. Na tradição africana da transmissão da cultura, Laíla é o “griô” na composição.
Em seu último ano na Sapucaí, após anunciar aposentadoria, o cantor Neguinho da Beija-Flor parece demonstrar uma emoção maior em sua interpretação ao falar do amigo. “Sua presença ainda está aqui, mesmo sem ver, eu posso sentir, faz Nilópolis cantar”, diz a inspirada letra. É de arrepiar.
Ainda diz que Laíla “queria a paz, mas era bom na guerra”, e em seguida que ele “apitou em outras terras, viajou nas ilusões”, provavelmente em referência a seu trabalho em outras escolas.
A Beija-Flor não é a minha escola predileta, mas é difícil não ficar arrepiado ouvindo a obra deste ano. A tendência é que seja um dos dos cantos mais emocionados da passarela do samba deste ano. Mas, como os demais, é uma canção restrita aos fãs do Carnaval.
Acadêmicos do Salgueiro
O desafio está lançado: “Quem se mete com o Salgueiro acerta as contas na curimba.” A divertidíssima provocação do refrão com a única chance de tirar o Carnaval de seu nicho este ano é o maior ponto forte do hino salgueirense.
O enredo “De corpo fechado”, permeado de religiosidade, cita o cangaço — na figura de Lampião e Corisco, que acreditavam-se protegidos após orações — e leva o ritmo para o embalo do forró, numa deliciosa “farofa”, embora meio lugar comum nos últimos anos.
Xande de Pilares é um dos autores, e dá seu grito de guerra ao fim. O canto de Igor Sorriso, que já soltou sua voz no Carnaval de Vitória, consegue transmitir o tom instigante da canção, que, segundo listas das plataformas de streaming, é a mais ouvida deste ano.
Unidos de Padre Miguel
Após mais de cinco décadas, a escola representada pelo boi vermelho retorna ao grupo especial com um samba forte e de refrão imponente. “Vila Vintém é terra de macumbeiro” é como o trecho descreve a população da comunidade — tratada no enredo como uma “pequena África” — onde a agremiação está sediada.
Mesmo fazendo parte das repetidas menções a figuras religiosas da safra deste ano, a composição brilha. E vai bem também nas estrofes. A melodia segue uma linha mais emocionada para crescer e explodir no refrão. A letra, mesmo repleta de termos no idioma iorubá, é bem sacada. Parece-me um samba muito promissor para a avenida, mas que é bom de ouvir também fora dela.
Mocidade Independente de Padre Miguel
Um mistão. O retorno ao futuro para que a humanidade reflita suas práticas, mude de rumo e evite o extermínio foi mesclado com uma volta da escola mais famosa de Padre Miguel aos tempos áureos em que explorava temas futuristas e colocava medo nas demais, com desfiles grandiosos. Era a época do carnavalesco Renato Lage, o “mago” que voltou para a agremiação.
O enredo faz com que escorregue pelos dedos a chance de romper a bolha com o samba, ao exagerar nas menções à própria história da Mocidade e deixar em segundo plano o tom apocalíptico. Mas, para os fãs, a inspiradíssima letra, agregando os perigos para a humanidade ao desejo da escola de retomar o topo, é um deleite.
O belíssimo refrão é mais um que soa religioso neste ano, dizendo que “Deus vai desfilar”.
O momento mais emocionante é o trecho que cita antigos sambas da Mocidade, concluindo tudo com os versos: “A mão que faz a bomba se arrepende, faz o samba e aprende a se entregar de corpo e alma na avenida”.
A rebuscada letra parece um pouco difícil em alguns momentos, mas, presente ao ensaio no meio da avenida, este palpiteiro aqui garante: ela está na ponta da língua da comunidade.
Unidos da Tijuca
Em sua estreia como compositora no Carnaval, Anitta debuta também como intérprete em uma escola de samba. Mera curiosidade, pois sua voz pouco agrega, e não prejudica. Mas, depois da primeira parte, Ito Melodia entra na gravação.
A canção começa com um refrão bonito sobre o orixá Logun Edé. A letra consegue fazer entender bem a temática mesmo para os leigos. Não chega a ser encantadora a composição, mas é funcional e, diria eu, fácil de apreciar para quem gosta de samba-enredo. Melodia leve e fácil de assimilar, embora simples.
Paraíso do Tuiuti
A escola que já retratou o então presidente da República Michel Temer como vampiro e desfilou com uma ala das “coxinhas armadas” faz neste ano um resgate histórico e homenageia a primeira travesti não indígena do Brasil, Xica Manicongo.
A letra começa no dialeto pajubá, utilizado no Brasil pela comunidade LGBTQIAPN+: “Ê pajubá, acuendá sem xoxá pra fazer fuzuê”. Aos curiosos, vale pesquisar para entender a letra do refrão, simples, fácil e original.
A letra, de tom crítico e reflexivo, começa com o pedido: “Só não venha me julgar pela boca que eu beijo, pela cor da minha blusa e a fé que eu professar”. Outros trechos dos versos são tão inspirados quanto. E polêmicos, como o brado: “Eu travesti, estou no cruzo da esquina, para enfrentar a chacina”. E fala ainda do "Brasil da Terra plana".
O problema da composição, na minha avaliação, está na melodia. As estrofes soam repetitivas em alguns momentos. Para o ouvinte geral, não afeito ao Carnaval, o samba fica repetitivo, o que se descortina ainda mais quando repete o estribilho “vim da África mãe, ê, ô”. No desfile, creio que isso possa prejudicar o canto. E é da Tuiuti a última obra que me dá vontade de ouvir nesta lista.
Estação Primeira de Mangueira
“Sou a matriarca da paixões, Mangueira.” Imponente, mas não vingou o samba. A verde e rosa bateu na trave neste ano. O animado refrão até parece que vai dar certo na avenida, mas a composição parece meio longa, cansativa. É ruim? Não. Mas não empolgou este palpiteiro aqui.
Unidos de Vila Isabel
“Solta o bicho!” O grito de guerra do cantor Tinga foi a ferramenta usada pela Vila para agitar com o samba sobre assombrações. Até funciona. O hino é o mais animadinho, alegre, do ano, mas é esquecível. Não há um grande momento na canção, embora ela também não tenha defeitos graves.
Algumas passagens da letra são engraçadas. “Quanto mais samba tocava, mais defunto aparecia” parece piada de quinta série: alguns riem da bobagem, outros acham constrangedor.
Esse clima alto astral promete um desfile funcional e pleno da Vila Isabel. Mas não dá vontade de ouvir a música.
Portela
Vem dos bairros cariocas de Oswaldo Cruz e Madureira, onde fica a centenária escola, a maior decepção do Carnaval de 2025. A Portela homenageia o genial Milton Nascimento, um dos maiores artistas da história do País. E joga por terra a chance de fazer um hino antológico da folia. Sem conseguir emocionar, o samba é esquecível, embora regular.
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