Culturalizar a democracia: urgência do contemporâneo
Coluna foi publicada nesta terça-feira (16)
Numa apresentação musical de “Carcará”, composição de João Batista do Vale, disponível em diferentes plataformas digitais, o artista Caetano Veloso anuncia: “É engraçada a força que as coisas parecem ter, quando elas precisam acontecer”.
Originalmente interpretada pela capixaba Nara Leão, substituída, por motivo de saúde, pela cantora Maria Bethânia, semanas depois da estreia do lendário “Show Opinião” (1964), “Carcará”, canção que integra o repertório do manifesto artístico, é ontológica.
Dirigido por Augusto Boal, produzido pelo Teatro de Arena e por integrantes do Centro Popular de Cultura (CPC), da União Nacional de Estudantes (UNE), o “Opinião”, que estreou em dezembro de 1964, foi uma resposta ao regime militar. Montado a partir de uma colagem de músicas, notícias jornalísticas, citações de livros, esquetes e depoimentos pessoais de vitimados pela ditadura, o espetáculo foi, inclusive, uma aposta na democracia e nos direitos democráticos.
Esses direitos se presentificam na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Destaque para o Art. 215, que afirma: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”.
Isso, contudo, não foi o que se viveu num capítulo recente da história brasileira. Nele, foi decretada a extinção do Ministério da Cultura (MinC); promovido o desmonte da Agência Nacional do Cinema (Ancine); difundida a ideia de taxação de livros; reverberada a tentativa de criminalização de criadores e trabalhadores da cultura, entre outras coisas, num cenário de apologias nazistas e exaltação da ditadura militar.
Logo, e a considerar o fatídico 8 de janeiro de 2023, não basta, como insta na Constituição Cidadã, democratizar a cultura. No contemporâneo, 60 anos depois do “Opinião” e quase 36 anos da Constituição de 1988, a urgência é por Culturalizar a Democracia. Importa que a sociedade se aproprie do sentimento constitucional democrático e incorpore-o como modo comunitário de vida que respeita a diferença e valoriza a diversidade.
Nesse cenário, a Arte – como campo de produção de conhecimento, de educação do sensível, do encontro ético-estético, de singulares-múltiplos – é fundamental na culturalização dos princípios democráticos.
A sua natureza, transgressora-convergente, “a força que as coisas parecem ter”, é energia motriz para o fortalecimento do Estado de Direito. Esse, precisa garantir as coisas, também de fato, “quando elas precisam acontecer”.
A Lei Paulo Gustavo; a recriação do MinC; a Criação da Secretaria de Formação, Livro e Leitura; a realização do 1º Encontro Nacional de Gestores de Cultura; a instituição da Política Nacional Aldir Blanc; a retomada das Conferências de Cultura; e o Novo Plano Nacional de Cultura são sinais da ampliação e do fortalecimento de políticas públicas que resultam dos pilares que alimentam a democracia. Essa, feito o carcará do letrista, “não vai morrer de fome”.