A era da perversão e seus sintomas no mundo dos viventes
Confira a coluna de domingo (23)
Não existe mundo perfeito e, como bem alertou Freud, cada um terá de lidar com o impossível da felicidade duradoura, obrigando-se “descobrir por si mesmo de que modo pode ser salvo”.
Apesar dessa sorte agridoce que tempera todas as travessias sob o Sol, pode-se dizer que há tempos em que viver é, do ponto de vista psíquico, um pouco mais desafiante do que a média. Nesse sentido, esta atualidade de perversão generalizada parece constituir uma era de sofrimento também pervasivo.
Os séculos XIX e XX configuraram subjetividades e laços sociais notadamente neuróticos, com sujeitos e relações as mais diversas fundados em repressões, limites, culpas, remorsos, contenções, etc. Foi um tempo coberto pelo pesado véu de pudores e pejos e obrigações – mas que oferecia nortes existenciais, ainda que a alto custo para o corpo e a alma.
No entanto, na virada do milênio, a cena da vida já antevia outra perspectiva. Trata-se de uma sociabilidade perversa, na qual estamos afundando a passos largos.
É um tipo de modelo social desavergonhadamente governado pelo furor incontido de utilitarismos, egoísmos, abusividades, em que se naturalizam relações e subjetividades predatórias – a insegurança, a incerteza e o medo envenenam corpo e alma.
A sintomática deste mundo hostil vai bem além das perversidades que se sucedem nas multitelas e nas trocas cotidianas. São sintomas íntimos, que emparedam todos os que transitam ao largo da larga avenida das psicopatias. Nestes, inundam o coração de vertiginosa aceleração. Sufocam o respirar. Turvam o olhar, que só vê horror. Entristecem o espírito, atado num paralisante leito de paranoias.
A ensejar esse tempo de ansiedades, pânicos, desânimos, melancolias e depressões a varejo, está a percepção de desamparo extremado, turbinada pela perversão normatizada. Nascemos prematuros e uma das primeiras sensações fundantes da psique é a percepção do desamparo.
A aplacar a terrível sensação de abandono inarredável, está a panaceia do amor redentor. Daí que um tempo de desamor estrutural só potencializa o terror do desamparo e seus sintomas.
Como bem descreveu Freud, com a “mútua hostilidade primária dos seres humanos, a sociedade civilizada se vê permanentemente ameaçada de desintegração”. Sob o espectro da perversão onipresente e paradigmática, vivemos uma inaudita e angustiante ameaça aos fundamentos da civilização humanística.
Se ultrapassar o tempo das neurotizantes repressões é uma dádiva, cair na escuridão do vale-tudo sanguinário e violento não é alento algum, pelo contrário. O desafio não é voltar ao passado, nem seguir no breu da maldade normalizada, mas, sim, pensar um horizonte no qual a fraternidade, a dignidade e a multiplicidade do existir sejam a baliza do edifício civilizatório.
Como o futuro não tem destino, que sejamos capazes de vislumbrar e construir um outro tempo, de liberdade e amparo aos viventes, garantindo a todos o direito de salvar-se a seu modo, numa realidade de algum bem-estar possível a todos.
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