Walt e Mearsheimer
Confira a coluna de domingo (09)
Em setembro do ano passado, o Papa Francisco aconselhou Volodymyr Zelensky a “levantar a bandeira branca” e negociar com Vladimir Putin uma saída para o conflito. Com sabedoria, acrescentou que “quando as coisas não estão indo bem, é ainda mais necessário ter a coragem de negociar”. Zelensky deve estar arrependido de ter esnobado o conselho.
A reeleição de Putin demonstrou que, bem ou mal, a guerra, desde que apresentada como o antídoto à conversão da Ucrânia em cabeça de proa da Europa, tem apoio na sociedade russa. Os dois povos compartilham uma longa história. Kiev foi a capital do império russo dos séculos IX ao XII. Tolstoi e Gogol nasceram em cidades ucranianas. A Ucrânia foi uma das quinze repúblicas socialistas soviéticas. Só em 1990, um ano depois da queda do muro de Berlim, o país conquistou sua soberania.
O esfacelamento da URSS a partir de 1991 alterou o cenário mundial. Passou-se a discutir o que fazer com a OTAN, se dissolvê-la, como se fez com o Pacto de Varsóvia, ou expandi-la. Lembro que George Kennan, o notável diplomata americano, formulador da doutrina do “containement” soviético, opunha-se à expansão, mas foi carta vencida. Em 1999, Hungria, Polônia e República Checa aderiram à Organização; em 2004, foi a vez de Bulgária, Eslováquia, Eslovênia, Romênia e, em 2008, anunciou-se que Geórgia e Ucrânia também viriam a ser membros. Foi aí que Putin fez o risco no chão.
Os cientistas políticos americanos Stephen Walt e John Mearsheimer consideram a ampliação da OTAN um erro crasso, um dos vários cometidos pela política externa dos EUA desde o fim da guerra fria. Junto com os fracassos no Afeganistão, Líbia, Iraque, Sudão – a lista é longa –, os erros decorreriam da ilusão com uma “hegemonia liberal-democrática”, que vem a ser a crença ingênua na possibilidade de exportar o modelo americano para todo o mundo. Na visão deles, a guerra na Ucrânia e a “guerra ao terror” não passaram de desperdícios de tempo e recursos.
Mearsheimer, com seu estilo direto, avaliou recentemente que a reunião de Donald Trump e J.D. Vance com Zelensky, em 28 de fevereiro, confirmou a decisão americana de conceder mais importância às relações com a Rússia do que aos laços tradicionais com a Europa. A exploração dos minerais ucranianos, prioridade americana, estaria apalavrada num acordo com Putin. Com isso, Trump deu-se por satisfeito. Ou seja, a Rússia ficará com, pelo menos, metade da Ucrânia, os europeus terão de arcar com as despesas militares para conter Putin, e tudo isso passa a ser aceitável para os EUA. Quanto a Zelensky, esse, coitado, não tem futuro.
Walt e Mearsheimer são baluartes do neorrealismo, ou realismo estrutural, uma corrente teórica segundo a qual a estrutura anárquica do sistema internacional e a prioridade da própria sobrevivência são os motores que levam os Estados à guerra ou à paz. Aplicando esse raciocínio às condições do mundo atual, tem-se que as relações com a China, único país com potencial para rivalizar com os EUA, e com a Ásia, epicentro do desenvolvimento econômico no século XXI, devem tornar-se, doravante, o foco principal da política externa americana. A Rússia é uma potência decadente, que não causa perigo real, e a Europa uma aliada de menor envergadura, que não compensa as despesas que acarreta. O resto é o resto.
O comportamento e as ações dos Estados são complexos demais para serem reduzidos a uma só teoria. Mas é inegável que os neorrealistas apresentam uma versão verossímil dos interesses que prevalecem no mundo atual, em que o eixo se desloca progressivamente do continente europeu para o asiático. O dilema é que, ao se concentrarem em medidas para neutralizar a China, os EUA estimularão uma reação chinesa de igual intensidade e em sentido contrário. Se a política não for conduzida com habilidade, a segurança americana, e a de seus aliados, não vai aumentar, e sim diminuir.
Ocorre que habilidade não é o forte de Trump. Sua indiferença aos direitos humanos e aos valores da democracia enfraquecem o “soft power” americano e reduzem a confiança nos EUA, e confiança é fator crucial em transições difíceis.
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