Não se ganha de véspera
Coluna foi publicada no domingo (28)
Não se ganha de véspera, mas se pode perder. A sabedoria popular consagrou essa máxima, que se aplica às campanhas presidenciais nos Estados Unidos e na Venezuela.
Nos Estados Unidos, o lançamento da candidatura de Kamala Harris causou euforia de grandeza inversamente proporcional à recente apatia do Partido Democrata. O entusiasmo é ampliado pela disposição com que a vice-presidente lançou-se à campanha.
Desde a renúncia de Biden, ela vem fazendo um comício por dia, em que além de argumentos bem calibrados, transmite energia, alegria e uma visão otimista do futuro.
Os doadores quebram a cada dia recordes de contribuições milionárias, deixando claro que os democratas pularam do baixo astral subsequente ao debate de 27 de junho para um alto astral em que o cheirinho de vitória inebria os correligionários.
Os republicanos sentiram o golpe. Gastaram milhões de dólares para caracterizar Biden como um velho incapaz, e agora têm o candidato mais velho que jamais concorreu à Casa Branca. Usaram todos os meios para tirar da berlinda os processos judiciais contra Trump, e agora defrontam-se com uma promotora experiente, ex-procuradora geral da Califórnia, preparada para o debate. Mas nada disso justifica um “já ganhou” democrata.
A polarização americana divide o eleitorado praticamente ao meio, e o colégio eleitoral acaba concentrando a imprevisível decisão final em meia dúzia de estados.
Além disso, o Partido Republicano dispõe dos fartos recursos de apoiadores bilionários, interessados nas reduções de impostos prometidas por Trump, avessos a visões de longo prazo em matéria ambiental e refratários às prioridades sociais dos democratas.
Conta ademais com as populações de estados em que a principal receita provinha da indústria mineradora, extrativa e analógica, hoje à margem de um mercado à procura de mão de obra digital.
Esses eleitores são presa fácil do discurso trumpista, que culpa os imigrantes por todos os males do país, do desemprego à violência urbana. Por isso, é previsível que Kamala Harris, uma vez oficializada a sua candidatura, escolha como parceiro de chapa alguém com atuação importante na questão migratória.
A situação venezuelana é mais imprevisível ainda. Escrevo este artigo na sexta-feira (26) e, a rigor, não dá sequer para apostar que as eleições serão de fato realizadas domingo. Seja como for, a diplomacia brasileira terá um papel a cumprir. A Venezuela não é um país qualquer. Integra o sistema sul-americano, em que o Brasil, por sua envergadura física, econômica e diplomática tem responsabilidades de líder, e é percebido como tal pelo resto do mundo.
A Venezuela detém as maiores reservas de petróleo do mundo, o que lhe dá relevância como parceiro comercial, importador de produtos industriais e serviços brasileiros. É um vizinho amazônico, importante aliado na conservação da floresta e parceiro na luta contra o narcotráfico e outros crimes transnacionais.
Essas e outras razões exigem que o relacionamento seja calibrado com cuidado, e é isso que temos feito há muito anos, mesmo antes de Lula. Lembro que Hugo Chávez assumiu o poder em 1998, e foi tratado sempre com distinção pelo governo Fernando Henrique.
Nicolás Maduro subiu à presidência em 2013, esta é a primeira eleição presidencial marcada desde então. Sua realização foi negociada em reunião diplomática realizada em Barbados, em outubro de 2023. No entanto, o comportamento de Maduro continuou polêmico, para dizer o mínimo. Sua mais preocupante iniciativa foi a promulgação, em 3 de abril, da lei que cria a “Guiana Essequiba”, que tem potencial pra gerar uma encrenca indesejável nas nossas fronteiras.
Maduro tem previsto que as urnas lhe darão a vitória. Eduardo González, seu rival, diz o mesmo. Quem vai ganhar, não se sabe. A esta altura, só há duas previsões possíveis: o povo venezuelano continuará sofrendo e a diplomacia continuará trabalhando para encontrar os consensos possíveis, pois não se pode simplesmente marginalizar a Venezuela do sistema continental.