Kafka vive
Artigo da coluna Tribuna Livre, escrito por Pedro Valls Feu Rosa
Há algum tempo li o levantamento “Justiça em Números 2024”, publicado pelo Conselho Nacional de Justiça. E fiquei a meditar.
Segundo consta, o ano de 2023 “se encerrou com um acervo de 83,8 milhões de processos em tramitação”. Para julgá-los, 18.265 magistrados. Dá uns 4.588 processos para cada um deles.
Façamos mais algumas contas. Calculou-se que cada juiz julga 8,6 casos por dia útil. Precisaremos, assim, de uns 533 dias úteis somente para que este passivo desapareça. Cada ano tem, em média, 250 dias úteis. Tradução: se fecharmos as portas dos juizados e tribunais levaremos dois anos para eliminarmos uma montanha de processos antigos.
Prossigamos: apurou-se que a cada ano aparecem 35,3 milhões de casos novos. Assim, quando forem reabertas as portas estará do lado de fora, aguardando processamento e julgamento, uma outra montanha de 70,6 milhões de processos.
Diante destes números fica clara a realidade de que o quadro atual é insustentável. De que “mais da mesma coisa” pouco revolverá, apenas adiará o momento da falência total, com imenso prejuízo para a população. De que o uso intenso e extenso da tecnologia apenas esconderá a verdade simples de que temos criado uma “burocracia digital” de contornos perigosos.
Fiquemos com os 8,6 casos julgados a cada dia útil por um único juiz. Dá quase um por hora. É humanamente impossível que cada um deles receba atenção serena.
Pois é. Temos orgulho de trombetear pelo mundo afora que neste país há juízes julgando dezenas de milhares de processos a cada ano. Deveríamos ter vergonha. Criamos uma justiça triste, quase que por atacado, entregue mais e mais a assessores. Fico a pensar se não temos sido que meros revisores do trabalho deles!
Sob o sistema atual, porém, não há saída - a alternativa é responder perante os órgãos de controle e a população. Assim seguimos em frente, julgando lado a lado casos simples e complexos, rasos e relevantes, da forma como for possível. Do jeito que der! Que erremos pouco, eis a súplica que faço ao Criador! Que erremos pouco!
Será tão difícil, meu Deus, devolvermos a dignidade ao mundo das leis tornando mais lógicos nossos procedimentos? Deve ser. Minha geração falhou neste dever. Sucumbiu diante da cegueira ávida de um sistema. Que a próxima seja mais feliz.
O que deve e o que não deve ir ao sistema judiciário? Por qual motivo prestamos tão poucas homenagens aos julgamentos colegiados? Ao princípio da oralidade? Como punir-se alguém de forma sábia? O que é crime, afinal? Por qual motivo permanecemos isolados em paróquias diante de um mundo globalizado?
Seria possível, através dessas reflexões, reduzirmos o brutal sistema de recursos que nos sufoca sem fragilizarmos a cidadania? Seria possível sermos mais juízes e menos burocratas? E que tal colocarmos ao nosso lado, na mesa de trabalho, a sociedade civil?
Estas são discussões complexas. Ultrapassam as próprias fronteiras do sistema judicial, adentrando nas searas da política e da economia. Mas seja nossa bandeira iniciá-las.
PEDRO VALLS FEU ROSA é desembargador do Tribunal de Justiça do Espírito Santo