A estratégia perversa e a banalização do absurdo
Os dias que correm desvelam um furor vulcânico em torno de temas fundamentais para a existência civilizada. Há muito alvejadas, liberdade de expressão e tolerância estão no centro da batalha entre o humanismo e a perversão que se quer normalizada por overdose do mal.
O esforço diuturno para a banalização da violência e do ódio sinaliza a disputa por uma hegemonia da perversidade, com seus tóxicos tentáculos de indiferença, mentira, revisionismo, relativismo, racismo, misoginia, homofobia, extremismo e negacionismo crescentemente açoitando nossa frágil civilização.
E esse ataque, insidioso ou descarado, vem cinicamente justificado pelo recurso à liberdade de expressão e à tolerância, balizas civilizatórias que se estabeleceram exatamente para edificar a dignidade humana em meio à diversidade do existir e à multiplicidade de concepções de existência – e não o oposto.
Nada mais abjeto do que usurpar de garantias da civilidade em prol do seu exato contrário, afrontando-se interdições previstas em marcos legais e em registros ético-morais da Declaração Universal dos Direitos Humanos, estabelecida no pós-Segunda Guerra como uma recusa veemente à barbárie.
A liberdade, incluindo a de expressão, não é absoluta, senão que direito condicionado. Seus parâmetros são historicamente ajustados e demarcados pelos pactos ético-legais que organizam as coletividades.
Ou seja, liberdade rima com limite. E limite é tudo o que os arautos da perversão recusam, tentando fazer coincidir liberdade e deslimite, o que é ainda mais agravado pela digitalidade.
A virtude da tolerância desvirtuada para justificar atos intolerantes é outra afronta recorrente à civilidade. Bobbio é definitivo: “o único critério com base no qual se pode considerar lícita uma limitação da regra da tolerância é o que está implícito na ideia mesma da tolerância, que se pode formular brevemente do seguinte modo: todas as ideias devem ser toleradas, menos aquelas que negam a ideia mesma da tolerância”.
Freud assinalou que nossa “inclinação para a agressão” é permanente ameaça à civilização, ou seja, à “soma das realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos antepassados animais, e que serve a dois intuitos: o de proteger os homens contra a natureza e o de ajustar seus relacionamentos mútuos”.
Infelizmente, a direção à civilidade não é um caminho natural da nossa espécie, permanentemente assombrada pela banalidade do mal, que, conforme Hannah Arendt, é patrocinada pelo desprezo ao exercício humanisticamente ético da vida do espírito (pensar, querer e julgar).
Como escreveu Pico Della Mirandola, Deus, ao lembrar Adão de seu livre-arbítrio, disse: “Poderás degenerar até aos seres que são as bestas, poderás regenerar até às realidades superiores que são divinas, por decisão do teu ânimo”.
Nessa metáfora secular, o resumo da inacreditável encruzilhada em que nos encontramos em pleno alvorecer de um novo milênio.
JOSÉ ANTONIO MARTINUZZO é doutor em Comunicação, pós-doutor em Mídia e Cotidiano, professor na Ufes e membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória.