Cultura afro domina os sambas de enredo do Rio

Temas ligados à negritude e às raízes africanas estão presentes na maioria das letras das escolas de samba deste ano

Rafael Guzzo | 21/04/2022, 17:43 17:43 h | Atualizado em 21/04/2022, 17:42

srcset="https://cdn2.tribunaonline.com.br/img/inline/110000/372x236/inline_00115106_00/ScaleUpProportional-1.webp?fallback=%2Fimg%2Finline%2F110000%2Finline_00115106_00.jpg%3Fxid%3D322978&xid=322978 600w, Desfile da atual campeã, a Viradouro, no Carnaval de 2020: candidata ao bicampeonato
 

O afro está em alta. No Brasil e no restante do mundo, o combate ao racismo e a defesa da cultura negra nunca estiveram tão em evidência quanto como vem acontecendo desde os protestos provocados pelo assassinado de George Floyd, durante uma abordagem policial nos Estados Unidos, em 2020.

Ritmo mais brasileiro e com raízes africanas, o samba não poderia ficar de fora dessa. Das 12 escolas do Carnaval do Rio de Janeiro, seis têm enredos completamente baseados em temas afro para o desfile deste ano. As demais, embora com outros assuntos centrais, também não deixam as menções à negritude de lado. 

Beija-Flor de Nilópolis, Paraíso do Tuiuti e Acadêmicos do Salgueiro, inclusive, deixam um pouco de lado parte do espírito festivo para uma manifestação mais contundente, clamando por resistência. A escola nilopolitana, por sinal, parte para o ataque ao racismo de forma mais incisiva, deixando a alegria em segundo plano.

Acadêmicos do Grande Rio, Mocidade Independente de Padre Miguel e Portela já abordam o candomblé e a cultura negra de forma mais eufórica e carnavalesca.

A pandemia da covid-19 fez do Carnaval uma data sem festa por dois anos e também inspirou as agremiações. A São Clemente homenageia o ator e cineasta Paulo Gustavo, morto em decorrência de complicações da doença. 

Mas quem surpreende mesmo é a atual campeã, Viradouro, que escolheu como enredo o longínquo Carnaval de... 1919: o primeiro depois da pandemia da gripe espanhola. E a história — a real mesmo, e não só a contada pela escola — aponta que a época foi marcada pela animação de quem não sabe se viverá o amanhã.

Com o avanço da vacinação, 2022 pode repetir a euforia do distante último ano da década de 1910, sendo possível uma segunda folia: a primeira em fevereiro, não oficial, quando parte da população, já vacinada, deixou os cuidados com a covid de lado e se deixou levar pela diversão; e a segunda agora, de volta à Marquês de Sapucaí, nesta sexta-feira (22/04) e no sábado (23/04).

E, para quem ainda não ouviu ou leu a respeito, deixo aqui algumas informações e impressões sobre os sambas de enredo deste ano, começando pelos melhores, em ordem decrescente, até o que não conseguiu ficar acima da média.

srcset="https://cdn2.tribunaonline.com.br/img/inline/110000/372x236/inline_00115106_01/ScaleUpProportional-1.webp?fallback=%2Fimg%2Finline%2F110000%2Finline_00115106_01.jpg%3Fxid%3D322979&xid=322979 600w, Ala das baianas da Grande Rio no desfile de 2020, quando a escola foi vice-campeã
 

Acadêmicos do Grande Rio

O enredo da escola de Duque de Caxias tem por objetivo falar de Exu e Estamira, catadora de lixo que dizia conversar com o orixá usando um telefone e que acabou conhecida após virar tema de um documentário.

Alguns compositores do Rio com quem conversei acreditam que essa meta talvez não seja atingida com a canção, já que, segundo eles, a letra não está completa para tratar das "sete chaves abordadas no enredo". Mas, como música, o samba da Grande Rio já virou um clássico que deve perdurar para os próximos carnavais.

A melodia arrebatadora casa-se perfeitamente com a letra, versando sobre entidades de religiões afro-brasileiras que colocam medo nos menos informados. "Exu caveira, sete saias, catacumba.  É no toque da macumba..." diz um dos trechos. 

Aliás, permito-me a relatar uma situação do meu cotidiano: presenciei um motoboy furando um sinal e fugindo de perto do meu carro ao ouvir o som que vinha dele, justamente esse verso.

O fundamentalismo religioso e o preconceito fazem com que o hino da Grande Rio se torne ainda mais delicioso, graças à sensação de confrontar a estupidez e a falta de tolerância.

Melhor do que ler a respeito é escutar essa obra-prima. Aliás, pela segunda vez a escola levanta a bandeira dos cultos afros. Em 2020, foi vice-campeã com um hino primoroso. E repete o feito em 2022.

srcset="https://cdn2.tribunaonline.com.br/img/inline/110000/372x236/inline_00115106_02/ScaleUpProportional-1.webp?fallback=%2Fimg%2Finline%2F110000%2Finline_00115106_02.jpg%3Fxid%3D322980&xid=322980 600w,
 

Mocidade Independente de Padre Miguel

Vem da bateria o maior legado da escola da Zona Oeste do Rio. Dela, surgiram a paradinha, o surdo de terceira e a figura da madrinha/rainha, entre tantas outras inovações hoje repetidas no samba todo o planeta.

O que nem todos sabem é que essa batida veio de um terreiro de candomblé, inspirada no toque para Oxóssi. O orixá padroeiro da agremiação é o homenageado do ano, num enredo que inclui o lendário Mestre André, um dos músicos mais virtuosos da percussão no mundo do samba, que, inspirado no toque da religião afro, criou a famosa bateria, chamada de "Não Existe mais Quente". 

A canção da Verde e Branco deste ano ficou famosa antes mesmo de cair no gosto popular, por ter Carlinhos Brown entre seus autores. E, seja de quem for o mérito, é uma música espetacular. Refrão pegajoso e estrofes bem construídas, apesar dos muitos termos poucos usuais e de origem africana, que podem atrapalhar o canto da massa em geral.

O momento de catarse do hino vem de forma inesperada, sem prenúncio, no meio de uma estrofe, e não no refrão. Numa referência ao sincretismo religioso que uniu cristianismo e candomblé, a letra faz uma referência ao santo católico relacionado a Oxóssi: ninguém menos que o padroeiro do Rio de Janeiro: "Quem é de Oxóssi é de São Sebastião!", diz a canção, em uma passagem que deve levantar os presentes na Sapucaí. 

Rimas e melodia bem elaboradas, quebras de ritmo que permitem à bateria usar e abusar das bossas e paradinhas; homenagens a grandes nomes da percussão da Mocidade e referências à entidade africana completam o bom samba.

srcset="https://cdn2.tribunaonline.com.br/img/inline/110000/372x236/inline_00115106_03/ScaleUpProportional-1.webp?fallback=%2Fimg%2Finline%2F110000%2Finline_00115106_03.jpg%3Fxid%3D322981&xid=322981 600w,
 

Beija-Flor de Nilópolis

A escola traz neste ano um verdadeiro libelo contra o racismo, no samba mais visceral de 2022.

A contundência dos versos faz tudo sequer parecer uma canção carnavalesca, numa letra repleta de protestos contra o preconceito estrutural e a violência policial: "Foi-se ao açoite e a chibata sucumbiu, e o meu povo ainda chora pelas balas de fuzil", clama o intérprete Neguinho da Beija-Flor em um dos trechos. 

A melodia já é tipicamente a daquele samba-enredo mais clássico, sem grandes mudanças de clima, mas muito eficiente e envolvente. Só me pareceu um pouco cansativa, ao ser executada frequentemente. Pode ser só uma impressão pessoal, e a Deusa da Passarela tem tudo para conquistar um 10 no quesito samba-enredo, que a credencia na disputa pelo 15º título.

Vale citar que os que assistiram aos ensaios técnicos da nilopolitana na Sapucaí reclamaram de uma bateria reta demais, o que também fica flagrante no disco. Será que vai assim mesmo ou vem surpresa por aí? 

srcset="https://cdn2.tribunaonline.com.br/img/inline/110000/372x236/inline_00115106_04/ScaleUpProportional-1.webp?fallback=%2Fimg%2Finline%2F110000%2Finline_00115106_04.jpg%3Fxid%3D322982&xid=322982 600w,
 

Unidos do Viradouro

A ideia absolutamente genial de transformar em enredo a primeira folia depois da pandemia da gripe espanhola rendeu uma canção bem construída e emocionante. Na verdade, a letra retrata uma correspondência escrita por "Um Pierrot Apaixonado" endereçada para ele, o Carnaval. 

Inclusive, nos ensaios, a escola de Niterói distribuía impressos os versos na forma de uma carta, exatamente no que se configura a canção.

Não acredito que algum fã do Carnaval possa ouvir o hino da Viradouro e não se emocionar. Relatando todo o pesadelo da pandemia da covid-19, mas de forma branda, com sutileza, narrando o período de isolamento social, em que não era possível ter contato físico e, portanto, sem rodas de samba, sem convivência. 

Tudo isso remete ao fim da década de 1910, mas qualquer um que tenha se resguardado do novo coronavírus em seu momento mais crítico deve ter o mesmo sentimento, de que, na verdade, a narrativa serve para ambas as épocas.

A privação acaba, a festa está volta, e o clima da canção é de felicidade e regozijo. A belíssima melodia culmina em um final feliz que relata o fim do uso da proteção facial contra o vírus. "Tirei a máscara num clima envolvente. Encostei os lábios suavemente. E te beijei na alegria sem fim. Carnaval, te amo, na vida és tudo pra mim."

Atual campeã, a escola de Niterói sai na frente com um tema capaz de conquistar a empatia mesmo do público que não se importa tanto com o Carnaval. 

O único senão que apresento é subjetivo: o refrão, na minha avaliação, estica demais as vogais para deixar a métrica correta. "Rio de Janeiro, cinco de março de mil noveceeeeentos e dezenove". Poderia ser melhor.

srcset="https://cdn2.tribunaonline.com.br/img/inline/110000/372x236/inline_00115106_05/ScaleUpProportional-1.webp?fallback=%2Fimg%2Finline%2F110000%2Finline_00115106_05.jpg%3Fxid%3D322983&xid=322983 600w,
 

Paraíso do Tuiuti

Com uma homenagem ao povo negro e a grandes personalidades afro, o refrão da Tuiuti cita Nelson Mandela e Zumbi dos Palmares em referência ao sangue que corre "nas veias" de sua comunidade, como a letra coloca. 

Nos versos, a escola demonstra a importância de o negro se reconhecer como tal, sua cultura, suas feições, origens e sua religião. E também se manifesta contra a violência da sociedade em relação aos afrodescendentes, presente, por exemplo, nos versos: "E o sangue negro que escorre do jornal inundou do oceano até a Pedra do Sal."

Pelo quarto desfile seguido, a Tuiuti apresenta um grande hino e tem o revolucionário carnavalesco Paulo Barros em seu quadro, mostrando-se uma possível candidata ao primeiro campeonato de sua história. 

srcset="https://cdn2.tribunaonline.com.br/img/inline/110000/372x236/inline_00115106_06/ScaleUpProportional-1.webp?fallback=%2Fimg%2Finline%2F110000%2Finline_00115106_06.jpg%3Fxid%3D322984&xid=322984 600w,
 

Imperatriz Leopoldinense

O carnavalesco, cenógrafo e figurinista Arlindo Rodrigues é o tema do enredo da escola de Ramos, que acaba citando agremiações concorrentes - ou coirmãs - como são tratadas as concorrentes no mundo do samba.  Arlindo levou a Imperatriz à sua primeira conquista no Grupo

Arlindo conquistou cinco títulos pelo Salgueiro, inclusive o primeiro, falando sobre o Quilombo dos Palmares; e também levou a Mocidade à sua primeira conquista, com o Descobrimento do Brasil, em 1979. Daí, o samba da Imperatriz, curiosamente, clama: "Canta, Salgueiro, ô, salve a Mocidade."

Numa melodia empolgante e um refrão que celebra o retorno para o Grupo Especial - em 2019, a Imperatriz foi rebaixada, vencendo a Série Ouro de 2020 e retornando a seu lugar na elite -, o samba é um dos melhores de 2022, muito bem interpretado no disco pelos cantores Arthur Franco e Bruno Ribas. 

srcset="https://cdn2.tribunaonline.com.br/img/inline/110000/372x236/inline_00115106_07/ScaleUpProportional-1.webp?fallback=%2Fimg%2Finline%2F110000%2Finline_00115106_07.jpg%3Fxid%3D322985&xid=322985 600w,
 

Unidos de Vila Isabel

Martinho da Vila é o homenageado pela escola, que entrega um samba empolgante e cheio de alto astral, com uma letra coloquial e de fácil assimilação sobre a história do cantor e compositor, num conjunto que cria empatia junto àqueles que acompanham a música brasileira e o Carnaval.

O refrão pegajoso deve conquistar o público na avenida. Mas, pessoalmente, considerei uma rima do trecho forçada: "Partideiro, partideiro, ó, nossa Vila Isabel brilha mais do que o sol." "Ó" rimado com "sol"? 

srcset="https://cdn2.tribunaonline.com.br/img/inline/110000/372x236/inline_00115106_08/ScaleUpProportional-1.webp?fallback=%2Fimg%2Finline%2F110000%2Finline_00115106_08.jpg%3Fxid%3D322986&xid=322986 600w,
 

Acadêmicos do Salgueiro

A escola tijucana é dona do refrão que promete ser o mais cantado na passarela, dentro de um hino que homenageia a própria história de luta da agremiação pela representatividade negra e contra o racismo. 

Para quem não sabe, a Academia do Samba tem um histórico de abordagens sobre personagens e a cultura afro, em plenos anos de chumbo. Quilombo dos Palmares, Chica da Silva e Festa para um Rei Negro estão entre os temas apresentados nas décadas de 1970 e 1960. O Salgueiro é resistência, e é isto o que confirma o enredo.

Assim como com Tuiuti e Beija-Flor, há também o clamor contra o racismo estrutural: "Um dia meu irmão de cor chorou por uma falsa liberdade" é um exemplo. 

Mas a canção salgueirense traz uma visão mais divertida, leve e carnavalizada em outras passagens, como ao explanar sobre a própria escola, falando do "gingado de malandro" e da cultura de sua gente. "Sambo para resistir", diz outro verso.

Senti falta, no entanto, de uma explosão, um verso ou uma melodia mais intensa. O Salgueiro oferece em 2022 um samba bem estruturado, mas cujo único momento de possível catarse é o refrão, no qual o nome da escola é repetido diversas vezes. 

srcset="https://cdn2.tribunaonline.com.br/img/inline/110000/372x236/inline_00115106_09/ScaleUpProportional-1.webp?fallback=%2Fimg%2Finline%2F110000%2Finline_00115106_09.jpg%3Fxid%3D322987&xid=322987 600w,
 

Unidos da Tijuca

A lenda indígena da criação do guaraná é o tema central do enredo da escola, que aborda ainda a defesa e a autonomia dos povos indígenas. A letra do samba que conta essa história é de uma sutileza impressionante. Até a mítica morte do menino pelo veneno da serpente é tratada com doçura e delicadeza, sem enveredar pelo caminho lúgubre, da tristeza. 

A melodia tem exatamente o mesmo clima. Doce, beirando o meloso. Para quem gosta desse tipo de canção, trata-se de um sambão. Não é meu caso. Além disso, parece-me meio repetitiva a melodia, que pode cansar o público em geral presente na Sapucaí. 

srcset="https://cdn2.tribunaonline.com.br/img/inline/110000/372x236/inline_00115106_10/ScaleUpProportional-1.webp?fallback=%2Fimg%2Finline%2F110000%2Finline_00115106_10.jpg%3Fxid%3D322988&xid=322988 600w,
 

Estação Primeira de Mangueira

A escola homenageia o ícone Cartola, cantor, compositor e um de seus fundadores; o mestre-sala Delegado; e o intérprete Jamelão. São três personalidades importantíssimas e mereciam um samba mais inspirado.

Cartola é o maior sambista de todos os tempos, autor de algumas das melhores músicas brasileiras já feitas, entre elas "O Mundo é um Moinho" e "As Rosas não Falam". Olha o tamanho da responsabilidade...

Não que o samba seja ruim. Tem vários bons momentos, mas faltou, na minha avaliação, um quê a mais. 

A passagem iniciada com o verso "As rosas não falam, mas são de Mangueira" até emociona, assim como a conclusão, com a gratidão a quem se dedicou ao pavilhão verde e rosa, mas sinto falta de algo maior. 

srcset="https://cdn2.tribunaonline.com.br/img/inline/110000/372x236/inline_00115106_11/ScaleUpProportional-1.webp?fallback=%2Fimg%2Finline%2F110000%2Finline_00115106_11.jpg%3Fxid%3D322989&xid=322989 600w,
 

Portela

A maior campeã do Carnaval do Rio traz um sambão com uma bela melodia, como de costume, mas a letra, tratando do baobá, árvore símbolo das culturas africanas, utiliza majoritariamente termos africanos. Não há relação com a vida cotidiana, portanto é pequena a possibilidade de empatia do público em geral. 

Claro que a massa portelense irá cantar com força, mas me arrisco a dizer que será só ela (ou quase). Isso vai pesar negativamente? Eis a questão. Mas foi o samba de 2022 que menos conquistou minha atenção. Merece menção o intérprete Gilsinho. Como sempre, um show à parte.

srcset="https://cdn2.tribunaonline.com.br/img/inline/110000/372x236/inline_00115106_12/ScaleUpProportional-1.webp?fallback=%2Fimg%2Finline%2F110000%2Finline_00115106_12.jpg%3Fxid%3D322990&xid=322990 600w,
 

São Clemente

Paulo Gustavo merecia mais. O ator e cineasta brasileiro até inspirou versos bem sacados nas estrofes da escola da Zona Sul carioca, que chegam a animar, mas o refrão que inicia a canção é um tédio absoluto. 

A impressão que dá é que o início da letra, num trocadilho com o nome da escola, é um dicionário, explicando o sentido da palavra "clementes". Para completar, as rimas forçadíssimas e cansativas que completam o trecho dão vontade de pular de faixa imediatamente. 

A palavra "clementes", rimada com "sentem", rimada com "gente", rimada com "frente" e rimada com "sempre". Cansei só de escrever aqui. Imagine só ouvir isso por mais de uma hora na Marquês...

*Rafael Guzzo é editor de Economia do Jornal A Tribuna, colunista do Tribuna Online e folião apaixonado pela Mocidade Independente de Padre Miguel.

SUGERIMOS PARA VOCÊ: