Pampa profundo

| 14/02/2021, 09:13 09:13 h | Atualizado em 14/02/2021, 09:15

Normalmente, nesta época do ano, eu estaria tirando uns dias junto ao mar, mas o “normalmente” foi cancelado.

Neste verão, a estrada me levou para o sentido oposto ao azul marítimo e às aglomerações que ele convoca. Uma semana no pampa profundo, lá fui eu. Gaúcha que se preze tem bom relacionamento com vacas, figueiras, forno a lenha: por que eu seria diferente? Mas sou, um pouquinho. Já passei finais de semana na estância de uns primos, outros na estância do namorado, tudo ótimo, mas cronometrado: na terceira noite, começo a sofrer com o excesso de silêncio.

Desta vez fui mais disposta, com um olhar treinado para o detalhe e a paciência mais esticada. Boa vontade faz milagres.

O pampa é longe. Depois de 400, 500 kms de asfalto, entra-se no chão batido, a poeira levanta e atravessa-se a campanha. Atrás das cercas, animais isentos de pressa, pássaros voando em câmera lenta, um peão solitário espia por baixo do chapéu e acena.

Está-se em outro tempo, em outro lugar. O carro para em frente a uma porteira fechada. O passageiro desce, abre, espera o motorista atravessá-la com o veículo, fecha novamente e retorna para seu assento, e a viagem continua até a próxima porteira, ou até que ela apareça: a casa.

Ela será branca e terá um passado. Os móveis contarão histórias de família. Tudo será original: a cerâmica do piso, as esquadrias pintadas de azul royal, os baús e cristaleiras.

Nada será sintético ou terá a etiqueta da Tok Stok: de moderno, apenas a tela na janela dos quartos tentando impedir a entrada de mosquitos, apesar de um furo ou dois.

Os cheiros não virão apenas da cozinha: feijões, carnes de panela, ambrosias. Os corredores e varandas também exalarão seus aromas. Da madeira do fundo dos armários. Do couro do tapete da sala. Da ferrugem dos ferrolhos das janelas. Abra todas elas. Lá fora, uma cartela com tons de verde nunca vistos.

Uma bezerrinha se aproxima do pátio em busca de leite, perdeu-se da mãe. O cavalo, ao longe, se alimenta de azevém e não se dá conta de que é um rei.

Répteis rastejam em pontos distantes - ou talvez perto demais, ninguém quer pensar nisso. E há os cachorros, vários, magros, os menores e os maiores, e alguns gatos.

E faz só cinco minutos que a mala foi aberta, recém troquei o tênis pelas botas. Haverá muito para contar.
Sobre um vento menos discreto do que o vento da cidade. Sobre perdizes, beija-flores e cardeais de topete vermelho.

Sobre as paineiras e suas sombras, o trote curto na égua mais mansa, as ovelhas reunidas por um border collie, os bambuzais e seus ruídos enganadores, o vocabulário peculiar do pessoal que vive rente à fronteira, quase em outro país.

Estou aprendendo. Mansamente, como convém. Não é mar, é outro mergulho.
 

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