O primeiro ano da pandemia e a memória do tempo da morte
Por estes dias, faz um ano que mergulhamos para valer na atmosfera mortífera da pandemia. Ainda que não encerrado em sua dramática sucessão de mortes diárias aos milhares, tempo decorrido é tempo de memória. É o caso, então, de se alertar: o importante não é apenas o que se lembra, mas também, e fundamentalmente, o que se esquece.
Essa operação é crucial, posto que forja um passado para sustentarmos o hoje e um possível amanhã. Ademais, esse movimento não é involuntário ou casual. Apesar da aparente espontaneidade, lembrar e esquecer são atitudes social e politicamente pautadas, o que também remete ao fato de que, absolutamente subjetiva, a memória resulta do fenômeno coletivo de fixar recordações e promover esquecimentos.
A memória coletiva contém a memória individual e vice-versa. É assim que a dor geral das mortes em massa, mais de 250 mil, se atomiza e entra em cena a trágica experiência pessoal de laços desfeitos pela ausência – um a um! Nessa progressão de desaparecimentos e lamentos, milhões choram a perda de milhares. E daqui a pouco, também começam a marcar no cruel calendário da saudade o primeiro ano da falta, numa doída contagem que durará uma vida.
Morrer é uma pena. Morrer é uma dor. Morrer é uma tristeza. Morrer numa pandemia é uma tragédia. Morrer numa pandemia de abandonos, uma desgraça aviltante. Essa é a via-crúcis que se coloca às nossas possibilidades de lembrar e esquecer.
Talvez tentem enterrar na vala comum do esquecimento a catástrofe de desmazelos dentro da catástrofe sanitária, naturalizando cadáveres além da conta do vírus. Mas vale repisar que o horror vivo da pandemia não bafeja apenas pela mortal presença virótica, mas também e assustadoramente pelo desvalor ignóbil à vida entre nós.
Esquecer, jamais! Posto que olvidar o infame e assombroso número de óbitos e sua dupla causa mortis, a do vírus e a do desamparo, seria mesmo banalizar o mal, fazendo de cada vida morta mero número a mais no quadro de tantas mortes brasileiras.
Pela pulsão de vida que anima a alma, insistimos em olhar adiante. Mas é vital observarmos o panorama disposto ao “Anjo da História”, conforme Benjamin: “Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína [...]. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso”.
Ao contrário do Anjo, nossa face teima em contemplar o futuro, e dar as costas ao passado. Que assim seja, mas que nossa redentora devoção ao horizonte não nos deixe esquecer a história do que se passou e se passa. Senão, será só mais e mais escuridão – e ruína.
JOSÉ ANTONIO MARTINUZZO é pós-doutor em Mídia e Cotidiano e membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória.