Democracia e fé. Ou a fé na democracia
A democracia é objeto de análise de inúmeros pensadores, desde Aristóteles, passando por Maquiavel e Montesquieu, além de muitos teóricos contemporâneos. Tratava-se, inicialmente, de um modo de distribuição e exercício do poder político que dependia da participação de um grupo de cidadãos – os eleitores.
No entanto, a compreensão atual de democracia não pode se restringir àquele aspecto, uma vez que a mera tomada de decisão sobre os rumos políticos do Estado pela maioria dos eleitores não encerra a noção plena do que se deve entender por democracia.
A democracia é mais do que uma sequência de eleições periódicas, é mais do que o “governo do povo”, é mais do que um artifício de retórica. Democracia é uma visão de mundo, um modo de vida, que aglutina o apreço às liberdades – econômica, de expressão, de associação, de pensamento, de crença etc.; e a real preocupação com as desigualdades de oportunidades.
Quem, por exemplo, não preza pela liberdade de imprensa, não consegue lidar respeitosamente com a divergência ideológica ou não se preocupa com o abismo existente entre os lucros imensos de certos setores econômicos e a miséria de parte da população.
Por mais que se autoproclame democrata, não alimenta efetivamente a fortaleza democrática, mas, pelo contrário, pode contribuir para o seu solapamento.
Quem não convive bem com a pluralidade de opiniões, não admite a possibilidade de estar equivocado em suas certezas ou não se conforma com o permanente contraditório de ideias. Pode ser qualquer coisa, menos um sujeito democrático.
É triste reconhecer que, nos últimos anos, em vários países, observa-se a (re)ascensão de movimentos conservadores e nacionalistas, em oposição às ideologias tidas como progressistas e globalizantes/universalistas.
O recrudescimento de ideologias autoritárias e a chegada ao poder de muitos líderes dessas correntes políticas tiraram das sombras da consciência os traços despóticos do cidadão comum, trazendo-os à luz do dia, em manifestações explícitas a favor da opressão, da tirania e da castração das caras liberdades públicas conquistadas ao longo de séculos de evolução ético-político-social.
Seria irônico, não fosse trágico, imaginar que esses pedidos de cerceamento da liberdade, uma vez realizados, implicariam a cassação do próprio direito de fazer tal manifestação.
Diante do quadro ameaçador à democracia, não resta alternativa que não seja resistir: dialogar, debater, formar opinião, promover os ideais democráticos, expor os contrassensos do autoritarismo, de maneira contínua e em todos os âmbitos possíveis. Não é tempo de sentir cansaço.
A democracia não pode esperar e depende da conduta de cada um. Parafraseando Freud, no curto e intenso ensaio intitulado “Sobre a transitoriedade”, reconstruiremos tudo o que esta época destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes.
Porque é para frente que se anda, que se olha, que se anseia. Atenção ao passado. Resiliência no presente. Fé no futuro.
Carlos Fonseca é magistrado e escritor.